«A Segunda Morte de Anna Karénina»: jogo de máscaras
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Ana Cristina Silva constrói a sua mais recente obra literária, “A Segunda Morte de Anna Karénina” (Oficina do Livro), apoiando-se num clássico enredo de traição e vingança. A interrogação espalha a sua sombra da primeira à última página. Algumas perguntas terão resposta, outras não.
Violante procura reconciliar-se com o passado. Interroga-se sobre o que seria de si caso não tivesse dado o único filho (Rodrigo) para adopção. O ex-marido procura saber se é pai do filho de Violante, ou se o filho é fruto da traição. Rodrigo encontra a sua resposta perante as interrogações apresentadas pela sua identidade sexual. Eduardo, o amante de Rodrigo, recalca os seus desejos sexuais.
Em todos existe um jogo de máscaras. O jogo entre o real e o irreal e entre a verdade e o fingimento deixa o leitor em suspenso. A relação entre Violante (actriz) e Luís Henrique (actor), seu ex-marido, confunde-se com os papéis por eles representados no teatro. O fingimento é parte integrante do casamento. A veracidade das palavras e dos sentimentos é obscura. A separação entre real e representado é problemática. O já mencionado jogo de máscaras mantém-se na ligação entre Rodrigo e Eduardo, além de nas suas relações com as correspondentes famílias. A Literatura assume, em ambos os casais, um papel fundamental na construção da personalidade.
Violante debate-se com a ausência de qualquer instinto maternal, mesmo a dor é, para ela, inacessível. No funeral do seu filho percebe que “ (…) a cerimónia fúnebre não lhe desperta a mínima comoção. A dor, que lhe parecia iminente antes de ali chegar, é na verdade inalcançável” (pág. 10).
O filho Rodrigo faleceu na Batalha de Lalys (09-29 de Abril de 1918), Primeira Guerra Mundial. Durante o combate nas trincheiras escreve diversas cartas ao seu amante, Eduardo. É através da leitura desses textos que o leitor tem oportunidade de observar a evolução emocional de um homem que se debate com as suas tendências sexuais. Rodrigo, a personagem mais bem construída deste romance, conta ao seu amante o percurso que trilhou até à aceitação e pacificação.
A autora consegue, com sucesso, fazer o paralelismo entre a guerra em França e a guerra social. As provações nas trincheiras reduzem o juízo social ao que realmente é: “O meu amor por ti tinha poder para perturbar o modo de vida burguês em que cresci. Também disso tive medo. Aqui, as consequências são, sem dúvida, menores, tiros e obuses podem tirar-me a vida, mas nunca a reputação de homem honrado” (pág. 42)
Mas Eduardo tem uma perspectiva diferente. Para ele, a homossexualidade baseia-se em “vícios de carácter”, ou defeitos no seu espírito.
O desenvolvimento desta tensão entre os dois e dentro deles próprios é muito bem gerido pela autora. A velocidade da narração potencia o drama, sem cair em sentimentalismos, e permite ao leitor entender a complexidade emocional destes dois personagens. A menor eficiência na gestão dessa mesma velocidade, quando acompanha Violante, leva a crer que a autora se sente mais confortável quando adopta o tom confessional na 1ª pessoa narrativa. No entanto, a homogeneidade da narrativa nunca é posta em causa.
De forma similar a outros livros, a autora opta por diferentes perspectivas na construção do romance. O leitor é entregue à visão de uma 3ª entidade, quando acompanha Violante, mas tem a possibilidade de interpretar, através do discurso directo, a comunicação epistolar entre Rodrigo e Eduardo.
A estrutura é mais conservadora neste livro do que no anterior, “O Rei do Monte Brasil”. Há dois fluxos narrativos diferentes, intercalados, em “A Segunda Morte de Anna Karénina”. O drama de Rodrigo é paralelo, mas não independente, ao de Violante, sua mãe.
A sombra de “Anna Karénina” pousa sobre o livro de Ana Cristina Silva. A intertextualidade entre a obra de Tolstoi e a da autora portuguesa é logo declarada no título. As personagens da escritora portuguesa partilham características com Vronski, Lévine, Kitty e Anna: A oposição entre amor carnal e físico, aproveitamento e sacrifício, vida e morte, o comportamento social e o individual.
Ana Cristina Silva- autora de “Cartas Vermelhas” (2011), livro seleccionado como Livro do Ano pelo jornal Expresso e finalista do Prémio Literário Fernando Namora, e de “O Rei do Monte Brasil” (2012), finalista do Prémio SPA/RTP e vencedor do Prémio Urbano Tavares Rodrigues 2013, tem conquistado, gradualmente, leitores e críticos.
“A Segunda Morte de Anna Karénina”, seu décimo romance, é mais uma etapa na consolidação da sua presença na Literatura Portuguesa.
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