O desalento cubano de Raquel Ribeiro
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“Este Samba no escuro” (Tinta-da-China) é um livro sobre desencontros, incompatibilidades, pequenas vitórias e grandes derrotas. Neste seu segundo romance (“Europa”, o primeiro, foi editado sob o pseudónimo Maria David), Raquel Ribeiro (n.1980) afasta a inebriante luz da Cuba folclórica e analisa as ruínas de uma ilusão, as idiossincrasias de um povo, a contradição entre irrealidade e realidade do coração de uma Cuba fracassada.
A autora portuguesa é impiedosa no seu desencanto. A luz da marginal, essa luz que atrai os turistas, não ilumina o interior de Havana. É nesse interior que reside a essência de uma Cuba entregue ao sonho de um homem só, à ilusão de um comandante ideológico numa terra dominada pela pobreza moral e física.
Raquel Ribeiro gere eficazmente a ambivalência entre Álvaro e Lia, entre a ideologia revolucionária cubana e a realidade da ilha e entre o orgulho e a pobreza.
O desenvolvimento da relação entre Álvaro, um saxofonista negro, e Cuba compreende três partes: Ilusão/ Desilusão/ Reacção.
Raquel Ribeiro, jornalista e estudante doutorada na Universidade de Liverpool com tese sobre Maria Gabriela Llansol, parece ter desenvolvido o mesmo tipo de relação nas suas frequentes estadias em Cuba, ao abrigo do seu projecto “War Wounds”: -Encanto-Desencanto-Resolução.
Vindo de uma aldeia, Álvaro foi influenciado pela sua família, em especial pelo seu avô, na "totemização" do ideal revolucionário. É com esse espírito que entra pela primeira vez na capital. Esperam-no dois anos de serviço militar.
“Perder esse momento [entrada em Havana] era estar condenado a sonhar sempre aquilo que não viu, mesmo que o visse depois com outros olhos, quando voltasse outras vezes, de Ciego para Havana” Pág. 13
A sua viagem é geográfica e cronológica. Dentro de Havana, ele vai conhecendo as diversas e antagónicas camadas de realidade. Ele parte do exterior para o interior, para o núcleo da cidade e, por extensão, para o pensamento de um povo preso a uma ideia de um pai moribundo.
Ao comparar a “voz” do avô com os sons da cidade, com a contemporaneidade, Álvaro reconhece que o tempo/ilusão do avô não se coaduna com a realidade.
“ (...) o Cerro era a Havana de verdade, a Havana onde muitos cubanos não se atreveriam sequer a ir, onde se dizia que só havia pretos e criminosos.
Descendo do centro, a cidade começava triplamente a escurecer. Turistas e senhoras brancas de sombrinha, nem vê-los, polícia também não: só mães pretas com crianças e sacos pela mão, pais pretos a engraxar sapatos, jovens suspeitos parados nas esquinas ou sentados sobre o muro, chinelando, para a frente e para trás.” Pág. 61
Descendo do centro, a cidade começava triplamente a escurecer. Turistas e senhoras brancas de sombrinha, nem vê-los, polícia também não: só mães pretas com crianças e sacos pela mão, pais pretos a engraxar sapatos, jovens suspeitos parados nas esquinas ou sentados sobre o muro, chinelando, para a frente e para trás.” Pág. 61
O sonho foi derrotado. O presente vive amarrado a uma ilusão. O povo, esmagado pelas privações, é subjugado pela burocracia e opacidade da Justiça.
Enquanto vagueava pela cidade, Álvaro, por ser negro e não encontrar os seus documentos quando solicitados, é preso e espancado pela polícia. Depois de libertado, ele encontra Lia, sua amiga de infância. A principal personagem feminina de “Este Samba no Escuro” é o contraponto de Álvaro.
Lia quer mudar o sistema a partir do seu interior. Não quer emigrar; ambiciona a alteração do sistema que, apregoando a liberdade, tanto aprisiona as pessoas e as mentalidades. Ela é uma militante. Lia age sobre a realidade, enquanto Álvaro reage de acordo com os acontecimentos.
Um dos muitos aspectos interessantes em “ Este Samba no Escuro” deve-se ao deslizamento entre realidade e fingimento. Tal qual foi abordado no texto sobre “Mais um dia de vida” (Tinta-da-China), de Ryszard Kapuœciñski, a simbiose entre a perspectiva de jornalista (factual) e a de romancista (ficcional) permite a Raquel Ribeiro criar um texto literário situado na ténue fronteira entre a realidade e a ficção.
A relação entre estes dois autores não é casual. O livro do jornalista polaco aborda a guerra de Angola, no momento da descolonização, onde participaram cubanos. Raquel Ribeiro recolheu testemunhos de participantes cubanos nessa guerra ao abrigo do seu projecto “War Wounds”. A génese de “Este Samba no Escuro” está vinculada à investigação da autora sobre papel de Cuba na guerra em Angola.
A influência do malogrado jornalista polaco é perceptível na obra da jornalista portuguesa.
O leitor já teve, antes deste romance, oportunidade de o conferir. “É perigoso ser feliz duas vezes”, da escritora portuguesa, foi publicado na Granta nº 2 (Tinta da China).
A dialéctica entre a ficção e o documentário é, assim, constante. Esse diálogo existe, também, entre a música e a realidade. A autora perspectiva Cuba através dos versos de Chico Buarque. Esta estratégia intensifica a sensualidade na prosa de “Este Samba no Escuro”, título retirado, precisamente, de um verso do autor brasileiro. A presença constante dos versos de Chico Buraque serve tanto de diagnóstico como de previsão da realidade cubana. A intertextualidade entre música, ficção e realidade não é inócua. A utilização desta estratégia narrativa ilumina o sentido do texto.
Raquel Ribeiro entrega ao leitor uma viagem cheia de promessas por cumprir, na qual espelha o desalento próprio de um amor difícil e nada pacífico.
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