APOLOGIA DO ESPANTO: O meu coração arde no teu peito.
Em tempo de agonia, o silêncio é violado por palavrões.
Escrever permite aliar o luto pela morte do som à necessidade de expelir a raiva, a ansiedade, a impotência e o medo, principalmente este medo de pai, tão profundo e agudo.
Uma sala de espera é um purgatório, quando um filho está numa sala de operações, longe da nossa capacidade para o ajudar.
O medo domina.
Na entrada do hospital, leio “Para existir é preciso ter nome”. Um recém-nascido no colo do pai.
Não, não é preciso. O nome tenta conter algo ou alguém que o ultrapassa. É um sinal de impotência.
Dois pisos abaixo nascem bebés. Onde eu estou morre gente, esperanças, e nasce o medo, o desespero e o fim. O fim nasce aqui.
Um pai sem o seu filho é um morto cujo corpo mantém o vício de andar e de respirar.
(Pai, conheço o hospital para onde vou?)
Iludimo-nos com as palavras; usamo-las para esconder os sentimentos; mentimos através delas.
Esta não é uma situação menos boa; é má. A tranquilidade não foi descontinuada; ela acabou no momento em que se soube da obrigatoriedade da cirurgia. Numa operação não há inconseguimentos; há falhanços.
(Conheces, filho. Não te preocupes)
O paciente do quarto 607 tem um número de beneficiário; é um menino, um filho, e tem um nome. Esse nome até poderia ser outro, pois o menino seria o mesmo menino que nos arrancou o coração do peito. Tem um nome partilhado por milhares de outras crianças, mas este é único porque é seu. E eu seria dele, mesmo que o nome fosse outro.
(Vai doer, pai?)
Acelero o tempo no texto, mas o mesmo não acontece com o do relógio. São agulhas em brasa espetadas nos meus olhos.
Só me apetece gritar palavrões. Não basta escrever.
As palavras falham, mas umas falham mais do que outras…
Paciente do quarto 607. Bloco operatório. Médicos com o sangue do meu filho nas mãos.
Espero pelo cirurgião para me dar uma palavra. Só quero uma: a certa.
Mário Rufino
Lisboa, 05/02/2014
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