A alquimia de David Foster Wallace.
David Foster Wallace (1962-2008; n.Nova
Iorque) é um alquimista. A sua capacidade em transformar um tema monótono e
desprovido de interesse num texto hilariante e entusiasmante caracteriza-o como
um escritor raro.
O conjunto de temas em “Uma coisa supostamente divertida que nunca
mais vou fazer” (Quetzal) seria banal (um cruzeiro de luxo, um festival de
lagosta, o discurso televisivo…), se não houvesse um elemento comum a todos
eles: David Foster Wallace (DFW).
O autor norte-americano consegue extrair o
mais valioso das situações mais enfadonhas e melindrosas. A sua prosa motiva o
leitor a adoptar pontos de análise diferentes para poder aceder ao insólito. O
absurdo é capturado e desmantelado para gáudio do leitor. E o autor diverte-se
com isso.
Os textos, publicados entre 1992 e 2005 em
diversas revistas e jornais, têm características formais ímpares. A
miscigenação de géneros é enriquecida com extensas notas de rodapé.
O leitor acompanha o raciocínio do autor
sobre o voyeurismo ou os esgotos da casa de banho; a “falta de pau” dos actores
porno ou a complexidade psíquica de David Lynch; a arte no ténis de Federer ou
a (in) capacidade da lagosta em sentir dor quando está a ser cozida.
Essa dimensão transversal do discurso
também é assinalado no (menos conseguido) ensaio “A vista da casa da senhora Thompson”. Perante o “Horror”, assim é
denominado o 11 de Setembro, o autor aponta no discurso de George W Bush “a sensação de que algumas das coisas que
diz são quase idênticas, a roçar o plágio, às proferidas há uns anos por Bruce
Willis (no papel de um maluquinho de extrema-direita, não se esqueçam) em
Estado de Sítio. (…) Não há aqui, nem de perto nem de longe, ninguém
suficientemente sofisticado para apresentar a doentia e óbvia queixa
pós-moderna: «Já vimos isto.» Pág. 389
Em “Uma
coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer”, texto que denomina
o livro, a propósito de um ensaio do escritor Conroy sobre os cruzeiros de
luxo, Foster Wallace delineia as bases do ensaio, tanto no geral como em
particular. Conroy foi pago pela Celebrity Cruises por esse texto. Não foi o
caso de Foster Wallace, viajante incógnito.
“ (...) a Celebrity Cruises está a apresentar a
resenha de Conroy acerca do cruzeiro 7NC que fez como ensaio e não como texto
publicitário. Isso é terrivelmente mau. Quer as honre bem quer não, as
obrigações fundamentais de um ensaio devem ser para com o leitor. O leitor,
mesmo que a um nível inconsciente, compreende isso e portanto tende a abordar
um ensaio com um nível relativamente alto de credulidade. Mas um texto
publicitário é um animal muito diferente.”
pág. 47
Esta é a sua postura sobre o ensaio e a
reportagem em oposição ao texto publicitário e é esta mesma postura que
percorre a construção do tão conhecido texto “Pensem na Lagosta”.
No grande festival da lagosta, onde esta é
cozinhada de 1001 formas, o leitor tem acesso ao folclórico inerente a qualquer
festival e também aos bastidores, aos assuntos menos debatidos ou desenvolvidos
pelos participantes.
A problemática da consciência e da
necessidade de espectáculo, já demonstrada no texto “Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer”,
continua presente.
Num texto pleno de ironia, é debatido o
sofrimento imposto à lagosta. Cozer em água a ferver é menos doloroso do que no
microondas? Dar uma facada na cabeça antes de a cozer é ser piedoso? Arrancar
as patas da lagosta para esta não tentar, em aflição, escalar a panela é
tortura?
Estranhamente, tudo faz sentido.
A “sociedade do espectáculo” é analisada
nas suas diversas vertentes. A raiz será a mesma. Em textos como “E Unibus Pluram: a televisão e a ficção
americana” e “O grande filho
vermelho” a pornografia e diversos programas televisivos são sintomas da
necessidade do ser humano em observar sem ser observado. Nestes dois ensaios é
abordada a influência do discurso televisivo tanto no quotidiano, onde cada
americano vê 6 horas, em média, de televisão, como na forma e no conteúdo da
literatura norte-americana. De forma bem fundamentada, Foster Wallace demonstra
a partilha do papel de voyeur entre telespectador e escritor.
As diferenças estão, essencialmente, em
quem é observado. Quando na televisão, os observados efectuam uma performance
de acordo com as expectativas dos telespectadores. A relação com o expectável
chega a um nível em que a própria TV, numa estratégia de auto-referencialidade,
aproveita o voyeurismo para iniciar uma textualidade em que ela própria é tema.
As personagens, na TV, comportam-se como a indústria pensa que se devem
comportar.
Em comparação, o escritor tem acesso a uma
maior naturalidade, pois o observado não tem noção de existir alguém a
observá-lo. Resta saber até que ponto a artificialidade da TV influencia
hábitos de conduta.
Estes dois textos partilham com “Uma coisa supostamente divertida que nunca
mais vou fazer” assuntos como a necessidade de entretenimento, distracção,
e de fuga a uma realidade pouco atraente. As companhias turísticas não vendem
viagens, nem a indústria de filmes pornográficos vende filmes. Ambas vendem
fantasias.
Já em “David
Lynch não perde a cabeça”, a perspectiva de Foster Wallace incide sobre as
influências de autores como DeLillo no cinema de David Lynch, na capacidade do
cineasta em romper com a narrativa linear e lógica, na obsessão do realizador
em demonstrar, nos filmes, a coabitação entre o mal e o bem em cada indivíduo.
É um outro tipo de discurso, em que o tangível é subordinado a conceitos
morais.
“Lynch não está interessado em transferências de
responsabilidade nem está interessado em fazer juízos morais das personagens.
Pelo contrário, está interessado nos espaços psíquicos em que as pessoas são
capazes do mal. Está interessado na Escuridão. E a Escuridão, nos filmes de
David Lynch, tem sempre mais do que uma cara.” Pág. 278
A necessidade de evasão, a incontrolada
projecção e fantasia continua a ser diagnosticada em “Como Tracy Austin me partiu o coração”.
“Os grandes atletas são profundidade em movimento.
Permitem que abstracções como poder, elegância e controlo não só ganhem corpo
como possam ser transmitidas pela televisão. Ser um atleta de elite, em ação, é
ser aquele requintado híbrido de animal e anjo que nós, espectadores banais e
nada lindos, temos tanta dificuldade em ver dentro de nós próprios.”
Pág. 393
Mas mais do que assistir, o público
necessita de conhecer a privacidade desses heróis modernos. As autobiografias
vieram preencher esse espaço. No entanto, nunca estão à altura das expectativas
dos leitores, pois a mitologia não tolera a sua desmistificação.
O poder das redes sociais, que veio
baralhar o conceito de privacidade, ainda não se fazia exercer no tempo de DFW.
De qualquer forma, as redes são ferramentas; DFW aponta para a motivação na
utilização dessas ferramentas de descodificação/codificação da privacidade.
Continuam a existir pontos de contacto com
ensaios anteriores: a questão do voyeurismo e a contaminação de discursos entre
o que se realidade expectável e realidade factual.
Além da “predilecção pelos mesmíssimos clichés com que nós, fãs de desporto,
tecemos o véu do mito e do mistério”, há a sensação de que a estrela de
ténis adapta a sua vida ao formato e às fórmulas da biografia. E tal como em “O grande filho vermelho”, a pessoa
deixa de representar quando, por breves momentos, se esquece de que na sua opinião
o tem de fazer. O mais interessante para o voyeur concentra-se no prazer que
tem ao detectar uma pequena imagem de realidade, umas palavras reveladoras, um
orgasmo não fingido.
O tenista Federer, em “ Federer: carne e não só”, parece contrariar as expectativas
frustradas.
Ver o tenista suíço no court de ténis de
Wimbledon é “o raio de uma experiência
religiosa”. É o chamado “Momento
Federer”.
Quem já assistiu a um jogo do tenista
suíço reconhece a capacidade de Foster Wallace em escrever o que é sentido pelo
espectador.
Roger Federer consegue aliar a excelência
psicomotora e a inteligência à elegância. Observamo-lo no court e pensamos no
ténis como ficção clássica, em que o suíço enfrenta Nadal, sua Némesis;
pensamos no ténis como Arte.
“Esta final de Wimbledon possuía a narrativa da
vingança, a dinâmica do rei versus o regicida, os absolutos contrastes de
personalidade. Trata-se do machismo impetuoso do Sul da Europa versus a
intrincada e clínica mestria do Norte. Dionísio e Apolo. Cutelo e bisturi.
Canhoto e destro” Pág. 414
Foster Wallace, antigo jogador de ténis,
amplia o conceito de Estética a áreas diferentes das tradicionais.
A textualidade, o campo a interpretar,
está presente em tudo. Nós somos texto. A partir deste princípio, a capacidade
de interpretação, a descodificação, pode ser mais ou menos profunda conforme a
capacidade do interpretante. O valor destes ensaios deve-se à capacidade do
autor em aliar essa capacidade de descodificação a uma escrita fluida,
descomplexada e provocadora.
O último dos 9 textos é “A água é isto”, único discurso dado
pelo autor, que pode ser importante na elucidação do pensamento de DFW.
David Foster Wallace procurou o outro lado
da narrativa acomodada ao expectável. Conseguiu com a classe já demonstrada,
também, no romance “A Piada Infinita” (Quetzal).
Mariorufino.textos@gmail.com
0 Comentários