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“A Missão” e “O Senhor dos Navegantes”, de Ferreira de Castro

O primeiro parágrafo de “A Missão” é o melhor frontispício que um leitor pode desejar quando entra num livro. Ferreira de Castro demonstra desde as primeiras palavras a excelência da sua escrita.

“A Missão” e “O Senhor dos Navegantes”, que compõem “A Missão” (Cavalo de Ferro), poderiam ter sido escritas em 2013. Não o foram, pois Ferreira de Castro (1898-1974) publicou-as, pela primeira vez, em 1954. No entanto, a actualidade inerente às criações literárias que perduram é característica intrínseca destas duas novelas. Na continuação da edição das obras de Ferreira de Castro, a Cavalo de Ferro continua a reabilitar… o leitor. Estas edições possibilitam-lhe colmatar uma falha nas suas leituras. Ferreira de Castro é um escritor essencial na tão longa e rica história da Literatura Portuguesa.
Nas duas novelas debatem-se temas como a Criação, a Salvação, a Moral. Na novela “A Missão”, um grupo de 14 eclesiásticos discute a possibilidade de pintar a cruz, símbolo de Cristo, no telhado do edifício onde está albergado. Nessa aldeia francesa, sobre iminente ocupação alemã em plena II Guerra Mundial, existe um outro edifício, que é igual ao da Missão. É uma fábrica, potencial alvo de ataques aéreos, onde trabalham cerca de 400 habitantes da aldeia. O interesse dos alemães em destruir a fábrica pode pôr em causa a vida dos eclesiásticos. Por outro lado, a identificação e salvação de uns pode comprometer a vida de outros.
Baseando-se neste dilema, o autor português ensaia um diálogo teológico. Geourges Mounier tem a infeliz capacidade de se interrogar. A religião para si não existe para perpetuar o poder, mas antes para estar ao serviço dos outros. As suas ideias são contrariadas pela retórica dos seus pares, pelas dogmáticas acusações de heresia e pela burocracia. O realismo e humanismo de Mounier são derrotados pelos conceitos vazios. A retórica de púlpito esconde a falta de humildade. O Superior, contrariando o pensamento de Mounier, afirma que “Temos, também, de pensar que os homens não valem apenas pelo seu número e sim pela sua qualidade (…) Aqui, nós somos poucos, é certo, e na fábrica os operários são muitos; mas a Missão é um centro de luz, um lar de onde irradia a doutrina divina…” (pág. 15)
A instituição religiosa separa-se do crente. A opção pela narração através de uma 3ª entidade optimiza as possibilidades demonstrativas tanto do realismo sociológico da aldeia como das características psicológicas (pecados, medos, segredos) de várias personagens. O equilíbrio existente desde a composição do enredo, passando pela construção das personagens até à própria sintaxe e utilização lexical é propriedade da literariedade de ambas as novelas. Tudo o que existe na prosa de Ferreira de Castro existe nas suas proporções exactas, sem excesso nem escassez.
Em “O Senhor dos Navegantes”, a prosa ganha dinamismo devido ao debate de ideias e à desconstrução psicológica das personagens, de quem nunca sabemos o nome. Um homem sobe uma colina para chegar a uma capela. Leva um livro para quando tem necessidade de repousar. Junto à capela, enquanto o caminhante descansa e lê o seu livro, surge um indivíduo carregando nos seus braços muitos ex-votos. O diálogo entre estes dois homens (subsiste a dúvida se um será mesmo humano) é um debate sobre a criação, a incompreensão, o significado e a sensação de incompletude.
Ferreira de Castro não se afasta daquele caminhante, provocando a ideia de que autor e personagem são a mesma entidade. Por sua vez, o misterioso indivíduo conceptualiza-se como um incompreendido demiurgo, que sofre a intolerância dos homens.
“Mesmo os que me adoram, passam a vida a discordar de mim e a tentar emendar o que eu fiz. Quando imploram as minhas graças para as suas infelicidades, não fazem, no fundo, outra coisa a não ser censurar-me, pois o que é uma súplica senão uma revolta que não se pode exteriorizar?” (pág. 80)
O Homem é incapaz de reconhecer o Divino. O Criador é derrotado pelo dogma da criatura. Ambos debatem-se com o absurdo da Vida e da Criação. O autor português tem na literatura uma ferramenta na defesa da libertação do homem.
As ideias humanistas são património comum das duas novelas de “A Missão”. O autor apela ao levantamento da dignidade do Ser Humano perante as adversidades impostas pelos poderes religiosos ou económicos. “Imperfeito há-de ele [mundo] ser sempre e vós também; contudo, em muita coisa podeis aperfeiçoar o mundo e a vós próprios. Mas não é de joelhos que o fareis; é de pé e a lutar!” pág. 84
“A Missão”, parábola da condição do indivíduo, é profundamente humanista.

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