Raramente o leitor tem possibilidade de
presenciar o aparecimento de um autor capaz de fazer sobressair a sua voz no
meio das suas respectivas influências.
Um escritor capaz de se inscrever na
realidade começa por ser um excelente leitor. Ele é, essencialmente, um
recriador. Steiner (figura central no pensamento do escritor português) afirma,
em “Gramáticas da Criação”, a
inexistência de inícios. “Já não temos
começos”, disse. É possível.
A mortalidade leva-nos a pensar no
inevitável submergir do ser humano no esquecimento. Provavelmente todos seremos
esquecidos pelos nossos pares.
Mas estas possibilidades ficam suspensas
quando entramos no universo de Gonçalo M. Tavares. Durante a leitura dos seus
livros, o leitor é levado a acreditar na reduzida, se houver, possibilidade de
estar perante o começo de uma memória perene.
O autor de “Jerusalém”, ou “Uma Viagem à
Índia”, terá captado o essencial das suas leituras. A partir dessas bases,
ele chama à sua escrita todas as influências presentes em si. Sentimos a
presença de outras vozes (Robert Walser, Barthelme, Örkény, Steiner,
Wittgenstein, Deleuze, Llansol, Arendt…) manifestando-se e tentando emergir. E
aqui, etapa onde a maioria se vê esmagada pela sombra dos canónicos, o autor
português faz-se ouvir. Muitas das suas influências são a sua sombra, pois ele
as suplantou.
Há escritores que
informam, entretêm e até promovem a fruição dos seus textos. Depois, há os que
se inscrevem, no sentido referido por José Gil, na realidade dos leitores ou
mesmo na identidade de uma sociedade.
O relevo dado à sua escrita ganha fulgor
quando a comparamos com a dos escritores portugueses já consagrados pelo
público e pela crítica. Ele é autor “forte”, no conceito bloomiano, entre muita
qualidade. A literatura portuguesa tem a excelência de Mário de Carvalho,
Agustina Bessa-Luís, Hélia Correia… e tem a de Gonçalo M. Tavares.
A adjectivação à sua obra tem sido
profícua. O reconhecimento com prémios também. A Literatura Portuguesa ganhou
um importante difusor da importância por si conquistada há séculos. Uma das
línguas mais faladas do mundo tem um invulgar representante na conquista de
leitores desrespeitadores das falsas fronteiras da literatura. A receptividade
por parte do público e crítica também o confirma. Os seus livros estão
traduzidos em 45 países; ganharam prémios em França (Prix du Meilleur Livre
Étranger 2010; Grand Prix Littéraire du Web – Culture 2010; Prix Littéraire Européen
2011), Itália (Premio Internazionale Trieste Poesia 2008, Sérvia (Prémio
Belgrado 2009), Brasil (Prémio Portugal Telecom 2007 e 2011), em vários géneros
literários – narrativas curtas, poesia, ensaio, romance.
Para “The New Yorker”, “Gonçalo M. Tavares é um escritor diferente
de tudo o que lemos até hoje”. Saramago disse haver um antes e um depois do
aparecimento de Tavares. Hélia Correia adjectivou “Jerusalém” de sublime e “se nada mais aparecer durante o século XXI,
ela [obra] já preenche os cem anos”. Para “The Times Literary Supplement”, “a notoriedade de Tavares em breve será
global”. E poderíamos continuar…
A sua prosa tem características invulgares.
A denotatividade da frase é posta em causa.
Cada palavra é uma interrogação. Com uma construção simples, muitas vezes
mantendo-se na organização sujeito-verbo-objecto, a frase tem muitas camadas e
sentidos, dificultando a assimilação numa primeira leitura.
O ritmo imposto é enganador. O leitor tem
de voltar atrás. Deve reler e reler. A literariedade dos textos assim obriga.
A literatura de Gonçalo M. Tavares não se
vincula a nada além de si mesma. Não tem reivindicações nem causas. Não batalha
por direitos sociais. Sustenta-se no melhor em si construído: um universo
literário criador de uma realidade paralela. O autor não procura o ambiente do
leitor em busca de pontos de contacto, de empatia. Não. O leitor é aliciado a habitar
um novo universo.
Neste
universo, a dialéctica entre o corpo, o pensamento e o espaço é crucial. O
corpo conta como no mundo visível; o corpo indica o interior ou exterior, a
afirmação ou a negação, o estar perto e o estar longe. O espaço define-se em
relação ao corpo de quem o analisa. A conjugação entre o pensamento
(incorpóreo) e a matéria visível mostra a impossibilidade de se afastar a filosofia
do corpóreo.
A
visão depende do movimento, de para onde se olha. A realidade física estimula o
pensamento, excita os sentidos, e promove o exercício criativo e comunicativo.
A abstracção depende da posição do corpo. A desfragmentação do indivíduo,
enquanto ser pensante, tem limites.
“Atlas do Corpo e da
Imaginação”
é, além do muito por si e em si representado, uma chave de leitura na
descodificação da ficção e não-ficção da obra do seu autor. A sua natureza
permite abrir a textualidade da série “O Reino” e da colecção “O Bairro”, por
exemplo, ao entendimento. A fruição por parte do leitor é exponenciada. Há um
antes e um depois desta obra de não-ficção do escritor português. O conhecimento
da textualidade em Gonçalo M Tavares será mais profundo depois da leitura/releitura
do livro apresentado por António Guerreiro e Delfim Sardo.
Este singular objecto literário interroga-nos,
espanta-nos.
Segundo
Steiner, mencionado na pág. 025 (entre tantas outras menções), “ a fonte do pensamento genuíno é o espanto,
espanto por, e perante o ser. O seu desenvolvimento é essa cuidada tradução do
espanto em acção que é o questionar”
Interrogar
é activar esse espanto, esse deslumbramento.
Gonçalo
M Tavares é um ser espantoso; é alguém surgido das suas influências, como tudo
e todos, como um deslumbrante fruto de combinações intelectuais e sensitivas.
É
um grande escritor ainda com algo para dar, em potência, e portador da
capacidade de deslumbrar, de interrogar…de espantar.
Mário
Rufino
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