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Hamsun: Uma ferida ainda aberta na Noruega
“Mistérios” (Cavalo de Ferro) dá a conhecer Johan Nagel, uma das mais complexas e marcantes personagens na obra de Knut Hamsun (1859-1952; Noruega).
A obra de Knut Hamsun é a essência da sua vida, desde a infância à velhice; desde o humanismo ao nazismo.
As suas palavras são o negativo dos seus imediatos antecessores.
A capacidade literária foi louvada por Gide, Mann e até Gorki. A postura política levou-o ao banco dos réus e a ser repudiado pela sua nação, a Noruega.
Knut Hamsun é um assunto mal resolvido pelo consciente colectivo do seu país. A sua complexidade como homem é visível na sua obra e na comparação da mesma com a sua vida.
Outrora visto como figura patriarcal, o autor viria a espalhar uma sombra muito negra sobre a sua escrita, pois foi um acérrimo defensor de Hitler (apelidou-o de “guerreiro e profeta da justiça para todas as nações”) e ofereceu, para escândalo de uma nação sofredora com a invasão alemã, a medalha de Nobel da Literatura a Goebbels.
O Homem e o Autor são duas entidades interdependentes, em maior ou menor grau. Em Hamsun (ou Céline, ou Soljenitsin) a autobiografia é indissociável da ficção; ele é Johan Nagel de “Mistérios” e é o jovem escritor em “Fome”.
Estes dois livros partilham a quintessência da psicologia hamsuniana: o desmantelamento da rede social formadora da psicologia de cada indivíduo. O autor opõe o homem incoerente, plural, complexo, modernista à visão de um homem uno e à visão social e moral de Ibsen.
O enredo, com todas as suas peripécias, é minimizado para dar lugar à evolução psicológica, à revelação, camada por camada, da construção psíquica de um individuo.
Os impulsos individuais, muitas vezes animalescos, confrontam a Moral, enquanto construção social. O homem regateia a sanidade mental na obscura fronteira entre a realidade e a irrealidade.
Hamsun procura encontrar o seu espaço, distanciar-se da sombra de outros grandes escritores.
A experiência do personagem de “Fome” encontra paralelismo com a experiência do indivíduo Knud Pedersen (nome de nascimento do escritor).
Knud Pedersen foi obrigado a ir viver com o tio, por causa das dívidas dos pais. Tinha 9 anos. A partir daí, a infância feliz foi substituída por períodos de violência física e emocional. Simultaneamente, tinha a possibilidade de aceder a obras literárias até ali impossíveis de serem por ele acedidas. A noção de complexidade psíquica, de ausência de maniqueísmos, começa, desta forma, muito cedo na sua vida. O tio tanto lhe causa sofrimento como lhe proporciona novas oportunidades.
O escritor está em formação.
Já jovem adulto, ele colecciona episódios de sofrimento, experimenta dificuldades e sofre humilhações.
Estes episódios serão transformados em mais do que património pessoal; serão transformados num dos principais monumentos literários da sua extensa obra: “Fome” (1890).
É este o livro onde consegue conciliar a coerência narrativa com o entendimento poliédrico do homem, sobre o homem e sobre a natureza. Do mais ínfimo detalhe, é realçada a beleza; da amargura e da dificuldade, é extraída a alegria.
Com “Mistérios” (1892), a editora Cavalo de Ferro consegue editar as mais importantes obras do autor: “Fome” (1890), “Pan” (1894) e “Victoria” (1898).
Dos quatro livros mencionados, os já referidos “Fome” e “Mistérios” conseguem romper com o rumo canónico de Ibsen e de Tolstoi. “Victoria”, um grande sucesso comercial, apresenta-se no século XXI como um livro datado na relação de forças com a contemporaneidade. “Victoria”, editado em 1898, é um retrocesso formal; é o início da saída do modernismo.
“Mistérios” dá a conhecer Johan Nagel, uma das mais complexas e marcantes personagens na obra do autor.
O desconhecido Johan Nagel chega a uma cidade situada na costa da Noruega. Simultaneamente à sua chegada acontece uma morte misteriosa.
Aproveitando-se da amizade com Grogaard, a quem chamam “Anão”, e da sua própria ascensão social, Nagel vai expondo-se e expondo as idiossincrasias sociais e as dos habitantes daquela pequena cidade.
Depois, Nagel desaparece da cidade tão misteriosamente como entrou.
Com um enredo simples, “Mistérios” é um romance de personagens. A perspectiva narrativa incide sobre as diversas camadas psicológicas de Nagel. Em simultâneo, e de forma mais indirecta (perspectiva de Nagel, essencialmente), é exposta a identidade de cada habitante, sob a “face” social, e analisados os rituais sociais em que todos se envolvem. Mas a grande riqueza está precisamente na competência com que é conseguida a revelação da psique do personagem principal. O monólogo interior, o desdobramento de Johan Nagel, quando se debate com ele próprio, são estratégias narrativas reveladoras da capacidade literária deste incontornável escritor norueguês. Além disso, a constante miscigenação entre realidade e sonho (Freud explicaria, mas mais tarde) permite ampliar a autognose do personagem.
Nagel é um provocador e um manipulador inteligente. Ele inventa-se, reinventa-se, e baralha as pessoas. Ele recria-se conforme as circunstâncias; muda de “face” conforme o papel a desempenhar. Mas nem tudo é sobre Nagel.
Hamsun aproveita para debater as diferenças literárias e filosóficas entre Maupassant, Ibsen, Tolstoi e Bjornsson. Numa reunião intimista em casa de Nagel (das págs. 160 a 180), os intervenientes mostram os seus argumentos a favor e contra os autores e suas criações. É o momento ideal para o autor norueguês vincar as suas diferenças perante o pensamento canónico da época.
Nesse debate entre amigos é ensaiada a filosofia hamsuniana sobre a literatura.
“Mistérios” é um marco importante na consolidação do modernismo na literatura europeia. Juntamente com “Fome”, “Mistérios” demonstra a capacidade literária de Knut Hamsun.
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