O
poder redentor da Literatura.
Por
vezes, somos deslumbrados por um livro que nos faz sentir pequenos.
“Para
onde vão os guarda-chuvas” (Alfaguara) é um dos mais belos livros que li nos
últimos anos.
Baseando-se
num episódio passado com Gandhi, Afonso Cruz (1971; Figueira da Foz) recria uma
história tão pura quanto isto: um muçulmano (Fazal Elahi) vê o seu filho
(Salim) ser assassinado por soldados americanos.
Ele
não consegue suportar a dor pela perda do filho. Decide oferecer a sua fortuna
(fábrica de tapetes) a quem o ajudar a acabar com esse sofrimento. A solução é
apresentada por um hindu (Nachiketa Mudaliar): adoptar uma criança americana.
Fazal
Elahi parte à procura de pacificação. Ele precisa de se completar.
São
620 páginas de procura da bondade pela bondade, do perdão pelo perdão, sem recompensa
nem retribuição além do acto em si. Desta forma, a ligação entre tudo e todos
poderá ser o mais pura possível. É que para Elahi, tudo o que acontece na vida
das pessoas está ligado “como se fosse um
tapete, o primeiro ponto não está separado do último, e se alguém mexer num
deles mexe inevitavelmente nos outros.” Pág.202
Ao
longo do livro, o leitor será acompanhado por Badini, Isa, Ilia Vassilyevitch
Krupin, Salim, Bibi, Aminah e muitas outras personagens concebidas pela intensa
criatividade do autor português. São muitas personagens e muitas histórias que
evoluem em narração intercalada. Os vários fios da narrativa são urdidos com a
mestria de um hábil artesão. Afonso Cruz pega em cada personagem, em cada
história, e tece um tapete voador como o do pai de Fazal Elahi. O progenitor do
nosso personagem principal via magia no tapete de oração. “Para onde vão os
guarda-chuvas” é isso mesmo: um mágico tapete de oração. É sobre ele que nos
debruçamos para seguir uma prece ao amor, à tolerância, à Literatura.
As
personagens são peças, com diferente importância, num tabuleiro de xadrez
(metáfora da vida). No entanto, a dicotomia entre Bem e Mal, entre peças negras
e brancas, entre espaços brancos e negros não é nítida. O Bem não elimina o Mal;
incorpora-o e domina-o.
As
acções, sejam com intuitos bondosos ou maldosos, têm, por vezes, o efeito contrário
ao pretendido, e o sujeito passivo, mergulhado na incompreensão, reage o melhor
que consegue.
O
tímido e “invisível” Elahi sobrevive como pode, debatendo-se sempre com essa
incompreensão. As suas interrogações são a sua maldição. Ele gostava de ser uma
sombra numa parede, mas as perguntas que lhe surgem perante o mal que sobre ele
se abate não o deixam sossegar, pois as “perguntas
são a porta da rua. Quando nos interrogamos, quando duvidamos das nossas
paredes, é porque estamos a passar pela porta. O facto de nos espantarmos com o
que se passa à nossa volta é sinónimo de vida” Pág. 318.”
“Para
onde vão os guarda-chuvas” captou esse nosso espanto, esse deslumbramento
perante o que nos rodeia.
O
universo de Afonso Cruz não se limita a criar empatia entre as palavras e a pré-existente
sensibilidade do leitor. Não. O seu universo expande-se a cada livro. O leitor
é transportado para sítios desconhecidos, “mentiras” com verdade no seu
interior, ficção que quebra limites da realidade.
As
personagens vão aparecendo, com maior ou menor relevância, em diversas obras.
Elas não habitam um livro; elas visitam o leitor quando ele menos espera.
Há
intertextualidade entre vários livros do autor. Uma obra reflecte algo de uma
obra anterior e, pode, inclusive, abrir uma janela para o leitor espreitar o
que vem a seguir.
A
filosofia é a essência da escrita de Afonso Cruz.
A
sua linha de pensamento vai dar a outra linha pensamento. E a outra. Há uma
miscigenação de ideias cristãs, islâmicas, judaicas, hinduístas.
Em
“Para onde vão os guarda-chuvas” tanto podemos estar perante o esoterismo e
misticismo da Cabala, ou os ensinamentos do profeta Maomé, ou a reencarnação hinduísta,
ou mesmo perante a manifestação da dor como purificação cristã. Estranhamente
(ou não) tudo faz sentido. Tudo se reflecte em tudo. É a rede mencionada pelo
escritor em entrevista ao Diário Digital:
“A noção de fora e de
dentro é uma ilusão. Os budistas têm uma maneira muito interessante de
descrever isto: a rede de Indra. Eles descrevem uma rede, onde, no cruzamento
dos fios, há umas pedras preciosas. Essas pedras reflectem todas as outras
pedras preciosas. Cada uma reflecte todas as outras, ou seja elas todas estão
dentro daquela. Apesar de estarem todas separadas, estão dentro e fora da pedra
preciosa.”
Elahi
é uma pedra muito preciosa neste xadrez. O autor construiu um personagem que
sofre perdas irremediáveis, sente revolta, medo, cai, se ergue e… perdoa.
A
sua fé parece curar tudo. No entanto, ele nunca deixa de se interrogar sobre o “equilíbrio absurdamente/moralmente/esteticamente
desequilibrado” vigente no mundo.
Badini,
o dervixe (monge muçulmano) mudo, também é uma figura inesquecível. O dervixe
de cabelo, pestanas e sobrancelhas rapadas “fala” com as mãos. É através dele
que Afonso Cruz substitui o fonema pela acção. As mãos de Badini agem para o
bem do ser mais próximo. Longe está o tempo em que Badini era espancado pelo
pai.
“Olhou para o filho,
que estava ainda agarrado à porta, e pisou-lhe a perna. Badini não se mexeu,
nem quando sentiu o tornozelo a estalar e o osso a aparecer de fora, como se
espreitasse pela janela.”Pág154
A
violência, nas suas diversas facetas (exploração infantil, maus-tratos a
crianças, violência sobre a mulher, delito de opinião, intolerância religiosa,
terrorismo), exerce uma posição angular neste livro. As formas de expressão
escolhidas na abordagem destes assuntos vão além da prosa. No interior deste
livro existem ilustrações sarcástimas, em “Histórias de Natal para crianças que
já não acreditam no Pai Natal”, existe a prosa em que nos é apresentado Elahi, enriquecida
com fotografias tiradas pelo autor, e ainda um livro de citações intitulado
“Fragmentos Persas”.
Afonso Cruz, em entrevista ao Diário Digital,
fez suas (ou ao contrário?) as palavras de uma personagem ao afirmar: Em relação às histórias, penso também que as
histórias são uma espécie de reencarnação hinduísta porque se me perguntarem
qual é a coisa mais importante ou qual é a coisa que quero salvar minha, não
penso que queira salvar o meu corpo ou o carácter. Isso não está sequer em
questão. Gostava de preservar as minhas ideias.”
Pode
ser este O Livro que preservará as ideias do escritor. O Tempo o dirá.
A
história de Fazal Elahi, o “cego”, poderá ficar por muitos anos: “Disse Ali: A bondade é um cego a segurar
uma lâmpada. Não lhe serve de nada, mas ilumina o caminho aos outros”Pág. 618
Por
agora, pode-se afirmar que “Para onde vão os guarda-chuvas” alimenta a crença
no poder redentor da Literatura. Já não é pouco.
Mário
Rufino
2 Comentários
Estou maravilhada....
Teresa Carvalho
Agora tens de ser tolerante com as próximas leituras. Vão ficar aquém do livro do Afonso.