Ryszard Kapuściński (1932, Pinsk-2007,
Varsóvia), escritor e jornalista polaco, testemunhou diversas revoluções e
momentos decisivos da história contemporânea (queda dos impérios coloniais, por
exemplo) de diversos países (Bolívia, Chile, Angola…). No entanto, a sua obra
não se resume às reportagens de guerra; ele foi, também, um ficcionista. Kapuściński
era um jornalista com imaginação de escritor. Foi com obras como “The Emperor: Downfall of an Autocrat”, “Shah of Shahs”, ou “Imperium” que se tornou célebre como jornalista e ficcionista.
Uma das questões que uma obra como “mais
um dia de vida - angola 1975” (Tinta-da-China) impõe é, precisamente, sobre a fronteira
entre o facto e o fingimento.
O leitor tem a possibilidade de aceder a
um documento importante sobre o período transitório de Angola de colónia
portuguesa para nação independente. Até que grau o documento está somente
vinculado aos factos é uma incógnita. A partir de quando, ou onde, é que o
autor “desliza” para o fingimento é quase impossível de detectar. Kapuściński
parece optar, por vezes, pela literariedade em detrimento da informação
factual.
Para escrever sobre esse conturbado
período de Angola, o jornalista sai do conforto da redacção e vai para Luanda.
No seu entender, “é incorrecto escrever sobre as pessoas sem passar pelo
menos um pouco pelo que elas estão a passar” Pág. 84.
Por este
motivo, o autor experiencia o quotidiano citadino de Luanda e a frente de
combate para relatar, por telex, as suas experiências para a redacção, em
Varsóvia.
Quando chega ao
território africano, o autor polaco depara-se com o caos.
Há falhas de
água, de electricidade e de saneamento básico. Os boatos percorrem as ruas de
Luanda, alimentando o medo, a violência e, em consequência, a convulsão social.
A corrupção domina o quotidiano dos habitantes.
Não se sabe
quem controla o quê. Ao longo do país, existem vários postos de controlo que
denunciam quem domina (FNLA? MPLA? UNITA?), mas o viajante só sabe quando lá
chega.
“ Se as sentinelas forem pessoal de Agostinho Neto [MPLA], que se saúdam
entre si com a palavra camarada, sairemos dali com vida. Mas se forem pessoal
de Holden Roberto [FNLA] ou de Jonas Savimbi [MPLA], que se tratam por irmão,
teremos chegado ao fim da nossa existência terrena.” Pág. 67
Além dos postos militares, existem outros montados por
camponeses ou povos nómadas que procuram, simplesmente, defender os seus
rebanhos.
É uma guerra de guerrilha, sem quartel, que passará,
pouco tempo depois, a regular. Muitos interesses se movimentam dentro do
território: há movimentações russas, cubanas, sul-africanas. Angola é um país
rico povoado por gente pobre.
A perspectiva de Ryszard Kapuściński sobre uma capital
em convulsão, fermentando no próprio medo, é demonstrativa da simbiose entre
ficção e descrição factual.
A narração dos boatos e da transferência do interior
da cidade de pedra para a cidade de madeira (caixotes), demonstrando as
diferenças sociais e materiais entre habitantes, é exemplar para a avaliação da
qualidade literária desta obra.
Segundo os dados disponibilizados pelo
autor, no período em que viveu os acontecimentos narrados, Angola, “A Mãe Negra do Novo Mundo”, era dos
países menos densamente povoados do planeta. A sua área equivalia a 14 vezes
Portugal. Foi muito utilizado como país de exportação de escravos durante 3
séculos. O analfabetismo era de 90 %. A população dividia-se em mais de 100
tribos.
Angola era um território fragmentado em clãs
e cujas fronteiras existiam nas línguas. Era um país que só existia no mapa.
“Mas eles [tribos] não sabem que este país
se chama Angola. Para eles, a terra termina na última vila onde as pessoas
falam uma língua que eles entendem. Essa é a fronteira do seu mundo. Mas,
perguntámos nós, o que há para além dessa fronteira? Para lá dessa fronteira,
há um outro planeta habitado pelos nganguelas, que significa não-humanos. Tem
de se ter cuidado com esses nganguelas, porque são muitos e usam uma língua
incompreensível que oculta os seus maus intentos.”
Durante séculos, Angola foi um território,
segundo o autor, martirizado por guerras conduzidas pelos portugueses que
buscavam as riquezas (incluindo escravos) do território.
Aliás, Kapuściński é muito duro na sua
análise da presença portuguesa em território angolano:
“Ao longo de vários séculos, Portugal
canalizou os seus melhores elementos para o Brasil, os piores para Angola.
Angola era uma colónia penal, o lugar para onde era deportado todo o tipo de
criminosos e de párias, todos os que estavam nas margens da sociedade. (…) A
mediocridade dos colonos contribuiu para que Angola se tornasse um dos países
africanos mais atrasados.” Pág. 178
Esta tensão, chamemos-lhe assim, ainda está presente
nas relações políticas e culturais entre Portugal e Angola. Podemos verificar
isso mesmo com o episódio do cancelamento do programa “Reencontro” (Antena 1),
com a edição de “Diamantes de Sangue” (Tinta da China), de Rafael Marques, e
com o episódio protagonizado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros Rui
Machete, nestes primeiros dias de Outubro de 2013.
A edição da Tinta-da-China vem enriquecida com um
prefácio do escritor e jornalista Pedro Rosa Mendes (prémio PEN 1999 e 2010),
autor de “A Baía dos Tigres”, livro considerado pelo jornalista polaco como “um trabalho vivo e fascinante de literatura”.
Esta (cuidada) edição de “mais um dia de
vida - angola 1975” (Tinta-da-China) impõe-se devido à qualidade da escrita de
um dos mais importantes repórteres da história do jornalismo.
Sobre o autor:
Sobre o livro: (vídeo)
A polémica crónica de Pedro Rosa Mendes sobre Angola:
Diamantes de Sangue (Rafael Marques):
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