Um dos autores mais emblemáticos
da nova geração, Valter Hugo Mãe está de regresso com «A Desumanização»,
editado pela Porto Editora, uma obra onde a sensibilidade encontra-se ao virar
de cada página. Para o escritor nortenho, «no lugar de Deus deve-se colocar a
Arte».
Valter Hugo Mãe é um escritor
diferente. E isso nota-se na sua escrita, onde as frases ganham um relevo
poético. O autor garante que os os livros não o correspondem, mas é impossível
não «vermos» VHM nas páginas das suas obras. Como afirma nesta entrevista,
Valter Hugo Mãe pretende apenas «proporcionar a felicidade possível aos que
amo». Os leitores agradecem tanto amor…
O que é desumanizar?
No contexto do meu novo romance,
trata-se de perder sensibilidade, robustecer, não permitir a vulnerabilidade
para persistir sendo gente. Para não perecer.
No seu novo livro, mudou de
contexto, viajou para a Islândia, mas levou os seus demónios. O que seria
diferente se o tivesse escrito em Portugal?
Devo ter levado parte dos meus
demónios mas a Islândia é um reduto de fantasias. Um espaço de tradições
esdrúxulas, histórias macabras e encantadoras que nunca abdicaram, sobretudo,
da permissividade e da intensa imaginação. Vejo a Islândia como uma terra na
qual os sonhos e os pesadelos, a euforia e o medo convivem numa inusitada
mistura. Sem a Islândia creio que poderia falar dos temas mas nunca chegaria à
mesma plasticidade. A Islândia confere um imaginário distinto, como se a
estética fosse necessariamente afinada a partir do seu ambiente.
A razão da minha pergunta deve-se
à inquietação que o leitor sente ao ver que o autor se expõe imenso no texto; o
Valter põe o coração no texto. É possível falar dos seus livros sem estar a
falar do mais intrínseco que há em si?
Não estou certo de que isso seja
assim. Acho que os meus livros são intensos e sempre aproximam o leitor do que
vai escrito. Sugerem uma intimidade. Mas, ainda que incluam parte das minhas
mais sinceras preocupações ou desejos, os livros não me correspondem. Eles não
contam exactamente a minha ida.
Freud denomina “forças
impulsionadoras da arte” aos conflitos do escritor. Quais são os seus
conflitos?
Sobretudo uma violenta relação
entre a razão e a inteligência emocional. Também uma dificuldade constante em
encontrar motivos para a vida e, ao mesmo tempo, precisar de encontrar pontos
de esperança e, mais do que tudo, manter quem me ama motivado e feliz. Quero
muito proporcionar a felicidade possível aos que amo.
Apesar de toda a sua [autor]
exposição, há uma forte carga simbólica no texto (espelho, flores, morte, deus,
boca, sangue, fogo) de “A Desumanização”. É uma forma de se proteger?
Creio que é um modo de fazer ver.
O texto deste livro é muito feito da carga visual dos fiordes. As imagens são
nítidas, ou pretendem sê-lo. Foi-me muito importante investir tudo na força das
expressões, porque o estar ali não é nada menos do que avassalador. Um relato
qualquer não faz ver a Islândia. Apenas os símbolos e a propensão para um certo
absolutismo ou tremendismo.
Crisóstomo e pais de Sigridur.
Para eles há a ausência, diferente conforme o caso, de um filho. Há um tipo de
amor que tem urgência em se dar, mas não a quem. O Valter escreve sobre o tema
para superar essa ausência [filial, paternal, amorosa] que sente?
Não escrevo para superar essa
ausência. Escrevo para a entender. Entender a ausência e entender a potencial
presença.
A morte é uma presença constante
nos seus livros. Não é - para diversas personagens em diferentes livros seus -
necessariamente o fim. O que o motiva a falar da morte? Medo? Curiosidade?
Não existem assuntos para além
dos da morte e dos da vida. Tudo se divide entre uma coisa e outra. Não há nada
mais escondido do que a morte e mais complexo do que a vida. Os livros fazem-se
desses temas. É inevitável que me proponha pensar sobre eles. O sentido de
todas as coisas, inclusive da literatura, só pode estar na utopia de cumprirmos
em esplendor a vida e redimirmos tanto quanto possível a morte.
Qual a relação entre Halla e
Valter Hugo Mãe? E entre Sigridur e Casimiro, seu irmão?
Há um paralelo ténue. Tive de
crescer respeitando, e de certo modo amando, um irmão que nunca vi. Crescemos
com a percepção da ausência, do lugar vazio de alguém. Fiz muitas conjecturas
acerca da semelhança ou diferença que haveria de existir entre mim e esse
irmão. As semelhanças e diferenças entre a minha vida e a morte dele. A
Sigridur e a Halla acabam por ter uma questão assim estabelecida. Que é
insanável. Não tem resposta. Nunca tem.
A perspectiva da irmã, pai e mãe
sobre a morte de Sigridur é o Valter a colocar-se no papel de irmão e dos pais
[em relação ao seu irmão]?
Não. Isso não. Não me coloco no
lugar das personagens. Sei sempre que um romance é um percurso pela ficção. No
máximo, as personagens coincidem comigo em algum sentimento, mas nunca me iludo
ao ponto de achar que me retrato. Na verdade, nunca me retrato, apenas me sirvo
do património de estar vivo e sentir para melhor entender o que sentiria uma
personagem se vivesse também.
Há ligação entre o Sr. Silva de
“A Máquina de Fazer Espanhóis” e o pai de Sigridur? Estamos perante a
continuação da homenagem ao seu pai?
Não pensei nisso. Creio que não.
O senhor Silva também não será o meu pai, apenas me permitiu reflectir acerca
da terceira idade, algo que me propus fazer depois de perceber que não teria o
meu pai como exemplo. O pai da Sigridur e da Halla prossegue algumas das minhas
fixações relativas à validade dos textos, à capacidade que eles terão de mudar
o mundo.
A mãe de Sigridur é o contraponto
da ideia que tem da mulher? Parece-me ser uma mulher mais fraca, que cede
perante a dor.
Nada. As mulheres são muito mais
pragmáticas e resistentes do que os homens. Ao menos genericamente parece ser
assim. Quis que a mãe das gémeas fosse como é no livro para criar uma força
oposta entre as personagens femininas. A mãe encrudescendo e a Halla urgindo
numa redenção. Como se fossem polos distintos, apartando-se, como se uma
fizesse a morte e a outra tivesse de fazer a vida.
Na FLIP, 2011, afirma o seguinte:
«Não sei se a Arte nos deve salvar, mas tenho a certeza de que pode conduzir ao
melhor que há em nós para que não nos desperdicemos na vida». É um assunto
presente em “A Desumanização”. A Arte é a melhor forma de comunicar connosco e
com o divino? É dádiva em vez de prece?
É a única prece em que acredito.
A arte é o melhor que podemos fazer, no sentido em que ela nos conduz ao
extremo e mais genuíno de nós próprios. É a construção mais profunda de que
somos capazes. Acredito nisso. Sim. No lugar de Deus colocar a Arte.
Em entrevista a Sílvia Souto
Cunha (Visão; 22/01/2010), a propósito de “A Máquina de Fazer Espanhóis” afirma:
«Há idosos que definham depois de se reformar, outros depois de tratarem de um
filho ou neto, ou de perderem o companheiro… é como se a vida deles se
justificasse através daquela relação». Halla encontra Einar, mas os pais de
Halla vão desistindo de tudo ao perder Sigridur. Ainda é possível, nesta
sociedade, morrer por amor? Ou viver para o amor em detrimento do sucesso?
Eu espero que sim. Sou um
indivíduo eminentemente afectivo. Preciso de confiar que ainda somos capazes de
colocar aqueles a quem amamos no centro das nossas ocupações e cuidados. Só
interessa termos arte, e a arte ser divina, se o dividirmos com alguém. Os
outros são o resultado de todo o esforço. No romance também se diz isso.
Diz-se: “A beleza da lagoa é alguém”. Significa que a lagoa só é bela porque o
podemos apreciar com alguém. Porque existe quem connosco possa discutir e
partilhar o deslumbre.
Que evolução (temática,
estilística…) encontra na sua obra, desde “O Nosso Reino” até “A
Desumanização”?
Não serei o melhor juiz, mas tendo a ver uma depuração nas expressões que não sendo simples o parecem. Essa simplificação que melhora os sentidos, clarifica as ideias agrada-me muito e é resultado de muita escrita e reescrita. “A Desumanização”, por exemplo, tem um intenso trabalho de linguagem mas mantém alguma candura, como se as energias do texto fossem conseguindo um equilíbrio entre a aspereza do que se conta e a beleza como tudo quer ser contado. Quero muito a beleza dos textos. Muito.
Não serei o melhor juiz, mas tendo a ver uma depuração nas expressões que não sendo simples o parecem. Essa simplificação que melhora os sentidos, clarifica as ideias agrada-me muito e é resultado de muita escrita e reescrita. “A Desumanização”, por exemplo, tem um intenso trabalho de linguagem mas mantém alguma candura, como se as energias do texto fossem conseguindo um equilíbrio entre a aspereza do que se conta e a beleza como tudo quer ser contado. Quero muito a beleza dos textos. Muito.
A obrigatoriedade de publicar
regularmente, própria de quem vive da escrita, não fatiga emocionalmente o
escritor? Esgotará rapidamente a temática?
É ao contrário. Quero sempre
escrever mais e mais. Escrevo coisas que guardo porque não faz sentido publicar
mais. É fundamental deixar ao leitor o tempo suficiente para ler, sentir
vontade de ler. O autor, por norma, respira pelos textos. Não pensa senão em
textos. Quer textos. Viver da escrita, ao menos em Portugal, talvez seja
possível apenas para quem tenha essa obstinação. Não sei. Na verdade, não há receitas.
Tudo pode acontecer e todos os modos são legítimos. Eu escrevo muito. Passo os
meus dias viciado em encontrar palavras que me ajudem a traduzir cada instante.
Mariorufino.textos@gmail.com
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