Cavar fundo para encontrar a
maldade.
“Pássaros Amarelos”
(Bertrand), vencedor dos prémios “PEN/Hemingway” e do “Guardian First Book”, é
um consciente exercício catártico.
Kevin Powers (n. 1980;
Richmond, Virgínia) serviu no Iraque (Mossul e Tal Afar) entre 2004 e 2005,
como operador de metralhadora. Regressou à sua terra natal com muito para
contar.
O biografismo é evidente.
Powers usa as suas experiências de guerra na construção da narrativa. E
utiliza-as de forma equilibrada, optimizando os pontos dramáticos num texto
reflexivo e reflectido.
Já nos EUA, depois da
guerra, o personagem Bartle recorda as atrocidades que mataram centenas de
soldados e que viriam a transformá-lo num indivíduo inadaptado. Os principais
inimigos são a memória e a consciência. Ele saiu da guerra, mas a guerra não
saiu dele. O inferno, ou pelo menos a consciência do inferno, começa quando
Bartle tem tempo para pensar e recordar. Até então, existira sobrevivência,
morte, putrefacção e incompreensão.
Murphy, companheiro de
armas, é presença essencial no inferno de Bartle.
O autor intercala, na
narração, o tempo em que cumpre serviço militar e o período em que se encontra
no seu país (antes de se alistar e após Al Tafar)
Em Al Tafar, Bartle combate
numa guerra que vai, paulatinamente, destruindo-o. A morte é um ritual
quotidiano.
“Percorríamos vielas. Víamos
os inimigos que restavam onde estes se encontravam emboscados, afastávamo-los
das armas com as botas. Rígidos e pestilentos, os cadáveres inchavam ao sol.
Alguns encontravam-se em posições estranhas, com as costas curvadas
ligeiramente afastadas do solo e outros estavam torcidos formando ângulos
absurdos, com a sua decomposição a repercutir qualquer geometria mórbida” Pág.
120
Para sobreviver, o soldado
segue as ordens; não as discute. A primeira vítima é o livre arbítrio. A
opinião é destruída em benefício da disciplina militar. Ele e Murphy são
obrigados a encontrar o pior deles próprios para saírem vivos de uma guerra que
não escolhe vítimas.
Só têm de cavar fundo e de
encontrar a maldade dentro de vocês” Pág. 46
Matar e não morrer. Só isso
interessa.
Em “Pássaros Amarelos”,
Bartle tenta reconstruir-se emocionalmente, exorcizando os seus demónios. O
leitor está perante a visão subjectiva de um soldado que o aproxima do inferno
da guerra mais mediatizada da História
A guerra no Iraque não serve
de motivo para uma aventura para entreter leitores. O autor vai muito mais
longe.
Não é caso invulgar quando a
Literatura serve de instrumento de reflexão sobre a história pessoal e/ou colectiva,
mas só um país com muita maturidade consegue olhar para as suas feridas quando elas
ainda estão tão abertas.
Na sua estreia literária,
Kevin Powers, autor e soldado, toca onde mais dói.
Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com
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