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Maria é
carne.
Colm Tóibín (n. 1955;
Enniscorthy, Wexford), autor irlandês várias vezes nomeado para o Man Booker
Prize e detentor de diversos prémios literários, publica em Portugal o belo e
inquietante “O Testamento de Maria” (Bertrand).
O texto de Tóibín é,
sobretudo, sobre a condição feminina e sobre a infidelidade da palavra escrita
à sua condição oral e primeira.
Maria, já no final da sua
vida, relata a vida do seu filho desde o nascimento até à crucificação (foz
e/ou nascente de muitas das suas recordações). Maria não sabe ler nem escrever.
Marcos, que virá a ser considerado o fundador do Cristianismo em Alexandria,
ouve e escreve.
“Sei que escreveu sobre
coisas que nem ele nem eu vimos. Sei que deu também forma ao que eu vivi e a
que ele assistiu, e que se certificou de que essas palavras terão peso, serão
ouvidas” Pág. 11
De forma consciente, a
matéria narrada pela mãe de Jesus é manipulada para adquirir conceitos
universais. Marcos, tal como Tóibín, utiliza diversas técnicas narrativas,
apropriadas à ficção, para contar o que foi visto por Maria. Ele ouve, adapta e
regista. A oralidade tem, principalmente nesta época, um efeito imediato sobre
um público presente e reactivo. A escrita não; o autor deste Evangelho tem em
atenção as características do discurso escrito. O Evangelho segundo Marcos é,
possivelmente, o mais antigo dos Evangelhos.
Tóibín sugere as limitações
da escrita quando regista o discurso oral. A infalibilidade da palavra bíblica
é posta em causa.
Marcos é, nesta obra, um
homem mais político e pragmático do que crente. A sua perspectiva sobre Maria,
por metonímia de mulher, é de distância e desvalorização.
“Por vezes, é difícil
resistir à tentação de falar com ele, embora eu saiba que a minha mera voz o
enche de desconfiança ou de um sentimento próximo da repulsa. Mas ele, tal como
o colega, tem de me ouvir, é para isso que cá vem. Não tem alternativa” Pág. 15
A dinâmica de “O Testamento
de Maria” deve muito à clivagem entre a perspectiva dos apóstolos e a condição
de Maria, como testemunha, mulher e mãe.
O Jesus de Maria é matéria
que nasce da matéria. O Espírito Santo é secundarizado pela perspectiva
maternal. Jesus é seu filho, foi gerado no seu útero. Não é parte integrante da
Santíssima Trindade.
É uma mulher cercada: pelos
discípulos, que lhe dão comida e providenciam abrigo, pelos informantes, pelo
remorso e pelo medo – especialmente pelo medo. Maria é uma mulher dominada pela
memória negra do dia da crucificação.
“ (...) apesar do pânico,
apesar do desespero, dos gritos, apesar de o coração e da minha carne, apesar
da dor que senti, uma dor que nunca me abandonou e que irá comigo para a campa,
apesar de tudo isto, a dor era dele não minha. E quando se pôs a hipótese de eu
ser levada à força e asfixiada, a minha primeira – e última – reacção foi
fugir” Pág. 89
A Palavra é o corpo da
interpretação.
Maria é carne.
Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com
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