“Emigrantes”, de
Ferreira de Castro
A literatura não tem obrigação de lutar
nem de salvar ninguém. A literatura não tem de estar vinculada a qualquer “ –
ismo”. Não tem, mas pode.
Ferreira de Castro (n. Oliveira de
Azeméis; 1898-1974), escritor e jornalista, é considerado um dos precursores do
neo-realismo. A sua produção literária é declaradamente combativa e “engagé”.
“Emigrantes” marca o início da edição
de toda a obra ficcional de Ferreira de Castro, pela Editora Cavalo de Ferro.
A ideologia subjacente à prosa de
“Emigrantes” é motivo e assunto na construção do respectivo romance. O autor
declara-os no Pórtico (prefácio):
“O problema da
emigração não é, porém, um problema-causa, mas consequência de outro mais vasto
e mais profundo. Assim, sob a forma do primeiro, o nosso romance pretende dar a
essência do segundo”. Pág.10
A ambição e a necessidade motivam o Homem a abandonar a sua
zona de conforto para aceder a novas oportunidades. A Migração sempre foi
característica intrínseca ao Ser Humano. O abandono de território para procurar
novos terrenos de caça era uma constante nos primórdios da nossa existência. A
evangelização, o “espalhar a palavra”, implicava, também, a peregrinação para
terras desconhecidas. Podemos observar estes aspectos em livros (ou documentos)
como “Carta de Pêro Vaz de Caminha” “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, ou
“Tratados da Terra e Gente do Brasil“, de Fernão Cardim, entre muitos outros nas
ricas e plurais “Literaturas de Expressão Portuguesa”.
O que viria a ser França, Luxemburgo e Suíça, anos mais
tarde, era então Brasil e os Estados Unidos da América: terra de oportunidades
e abundância.
O Portugal do início do século XX é um país rural, pouco
desenvolvido. O analfabetismo impera. Dentro destas condições, as pessoas de
baixas habilitações têm a ambição de serem ricas, ou de, pelo menos, não
passarem dificuldades. É o caso de Manuel da Bouça, personagem que acompanhamos
do princípio ao fim do romance. Ele é um homem movido pela curiosidade, mas não
só. A necessidade e a ambição empurram-no para uma aventura com objectivos
precisos, mas de consequências imprevisíveis. Ele representa a escassez de
escolaridade e posses.
Manuel da Bouça hipoteca, no presente, o que tem em Portugal
(courelas) e separa-se da sua família (mulher e filha) para, em terras
estrangeiras, entregar-se a uma quimera com o objectivo de alcançar uma vida
melhor, no futuro. Não era o único. Uma palavra aparece recorrentemente no
texto para caracterizar o fluxo migratório (portugueses, italianos, russos…):
“Rebanho”.
“ (...) lares inteiros que se deslocavam,
famintos de pão e de futuro” Pág.79
O escritor, emigrante durante muito tempo no Brasil, faz da
sua própria experiência, enquanto empregado em diversos trabalhos precários,
matéria literária. As “dores” de Manuel da Bouça são, em parte, as do autor.
Também ele sofreu com a divisão de classes que fechava ao
pobre as possibilidades de conquistar uma vida melhor. Talvez por isso, a
pobreza seja apresentada de forma romântica e honrada.
“Manuel da Bouça
pensou: «O urso trabalha para o dono. É o dono que lhe dá de comer, mas dá-lhe
de comer com o resultado do trabalho que o próprio urso faz. Se não tivessem
preso o urso, ele podia comer sem precisar do dono. Quando eu trabalho para os
outros, eu sou, salvo seja, como o urso. Mas, com certeza, no Brasil e na
América, os homens não são como ursos, pois lá eles enriquecem em pouco tempo.”
Pág. 40
“Emigrantes” mantém, em 2013, a contemporaneidade e a
pertinência temática, apesar da sua primeira publicação ter sido em 1928.
Ferreira de Castro construiu uma obra com uma riqueza
lexical pouco vista em autores surgidos no primeiro decénio do século XXI. A
prosa de “Emigrantes” é densa; nela abunda a adjectivação, os diminutivos e a
metáfora. Os diálogos estão próximos da oralidade. As combinações semânticas
deste nível “Como de costume, despenhadas
as doze na igreja na matriz…” enriquecem o texto literário.
Quanto a Manuel da Bouça, ele é um homem em trânsito. É o
pobre, o último do rebanho.
O autor parece amplificar, com “Emigrantes”, a voz do “Velho
do Restelo”, no Canto IV dos “Lusíadas”:
“"A que novos desastres determinas/ De
levar estes reinos e esta gente?/ Que perigos, que mortes lhe destinas / Debaixo
dalgum nome preminente?/ Que promessas de reinos, e de minas/ D'ouro, que lhe
farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? que histórias?/ Que triunfos,
que palmas, que vitórias?
Mas quem seríamos nós, povo português, se optássemos por não
procurar?
Mário Rufino
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