“É verdade. Nós todos
macaqueamos Deus na sua ausência”[i]
Mathias Énard
Imitação da Vida
Como
é possível terem cortado a árvore? Como é possível terem eliminado o tronco, os
ramos, as folhas que cabem na palavra “árvore”?
A
palavra é a mesma quando o objecto já é diferente ou não existe?
Não
posso rachá-la como racharam a árvore. Caiu seca no chão. Braços a rangerem com
as folhas nos dedos até se confundirem com o pó. E depois a sombra. Uma mancha
negra dentro da nuvem amarela e intoxicante.
Uma
sombra que se diluiu na terra quando, antes, pousava nela. A luz do céu olhava
para os ramos e desenhava-os no solo.
Os
doentes gostavam de se sentar na imitação da árvore. Os babantes, senhor
doutor, e os não-andantes são imitações deles próprios. Seres imateriais. Como
a sombra. Nós, os depositados, somos imperfeições de um logro, de uma enorme
imitação.
E
o que faço agora com esta palavra? Mantenho-a? Por que razão a cortaram?
- Penso que estava
doente.
Não
estamos todos?
- Poderia cair em cima
das pessoas.
Por
isso estamos aqui. Para não cairmos estupidamente em cima de alguém que não
quer ser incomodado.
- Estão aqui para serem
tratados.
Não
me lixe. Querem tratar-me da saúde...
- Por que se preocupa
tanto com isso? Praticamente não sai do edifício.
Por
que razão haveria de sair?
- Veria pessoas,
falaria com elas…
Doutor,
sofro de esquizofrenia. Já tenho muita gente dentro da minha cabeça. De
qualquer forma, não me preocupo com a árvore. Preocupo-me com a falência da
palavra. É tudo o que tenho. Vejo que me trai.
As
palavras multiplicam-se, mas o objecto é só um. Entende a minha ansiedade?
Se
o objecto desaparece, a palavra deveria morrer.
- Mas há mais árvores…
Não
para mim. Esta era a única que via. Não vou ver mais nenhuma. Não sairei deste
sanatório. Mato a palavra que há em mim. Recordo-me dela, do objecto dela, mas
não a utilizarei mais.
- Mas existe em si.
Recorda a imagem….
Mesmo
matando a palavra, o objecto mantém-se independente…é o que me diz? Então está
viva.
- Como assim?
A
partir da palavra construo o objecto. Se a palavra não é o objecto, então eu
posso providenciar o que é requerido pela minha realidade. Se a realidade é
construída pelas palavras, então posso sair daqui. Mais! A partir da palavra
posso contruir um bairro, uma cidade, uma nova realidade! Posso dizer que estou
livre!!!
- Mas não está.
Não
no seu mundo. Estou livre desta merda de sanatório, das suas sessões, das
fraldas, dos comprimidos, das velhas sem dentes, dos purés…
- Ficciona-se.. Acha
que está mais perto da verdade, dessa forma?
Verdade…
se estamos a falar de alguma coisa, não é de verdade. As palavras não mostram a
verdade. Mostram o que conseguimos ver. Elas são o limite da nossa percepção; o
horizonte do nosso conhecimento. Não lhe estou a contar verdade segundo os seus
termos.
- Então o que me está a
contar? A história da árvore?
Não
há nenhuma história. Há sombras e margens.
Mário
Rufino
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