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Mathias Énard (n. 1972), professor de Árabe na
Universidade de Barcelona, estudou Persa, além de Árabe, nas suas longas
estadias no Médio Oriente.
É autor de várias obras, das quais 2 estão
traduzidas para português “Zona” (Prémio “Le Livre Inter 2009” e “Décembre
2008”) e “Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” (Prémio “Goncourt des
Lycéens 2010” e “Prix du livre en Poitou-Charentes” 2010).
O autor esteve em Portugal para apresentar
“Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” na “Feira do Livro de Lisboa” e
na “Noite de Literatura Europeia”.
O leitor que aceite o desafio de ler “Zona” (D.
Quixote) e “Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” (D. Quixote)
percebe, imediatamente, a riqueza de recursos narrativos do autor francês.
Os dois livros de Énard são completamente
distintos. Enquanto “Zona” é um “stream of consciousness”, com poucas
possibilidades de o leitor repousar num ponto final, e onde o tempo narrativo é
tudo menos linear, “Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” é composto
por capítulos curtos, com leitura mais pousada, e muito mais rígido
temporalmente.
Foi devido a estes dois livros que o Diário Digital
teve a oportunidade de, numa curta conversa, confirmar a inteligência e conhecer
a simpatia de Mathias Énard.
“Zona” tem um ritmo e estilo
completamente diferentes de “ Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes”.
Por que escolheu contar estas duas histórias de forma tão diferente?
O estilo de
“Zona” está ligado à essência da viagem de comboio. Como a viagem não tem
paragem, a frase também não. Tem também muito a ver com “Epos”, algo que é
épico.
Por outro
lado, “ Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” foi pensado como um
“sketchbook” (livro de esboços), como de desenhos do próprio Michelangelo.
Simplesmente, vê-se um capítulo curto, de 2 páginas ou 3, como um desenho.
Depois, muda-se para outro tal qual num “sketchbook”.
Essa era a
ideia que tinha para este livro. O ritmo totalmente diferente tem também a ver
com a própria personalidade de Michelangelo.
Fez alguma
investigação para este livro?
- Muita,
muita… Primeiro, quando descobri esta história comecei a investigar como era
Istambul, como era a situação económica, quem esteve lá, quem Michelangelo
poderia conhecer, naquela altura, como seria a cidade até aos mais pequenos
detalhes. Depois, que mercadorias eram importadas de Itália para o império
Otomano? Quais os objectos? O que é que eles comiam? O que é que vestiam?
Foi um
enorme trabalho durante um ano ou dois. Foi terrível. Eu não conseguia escrever
devido à quantidade de detalhes que tinha na minha cabeça. Eu tinha cinco
páginas e não conseguia avançar mais. Tive de esperar mais 1 ano para
“esquecer” tudo aquilo. Era demasiada informação.
A personagem
de Michelangelo pesava-me imenso devido a tudo o que sabia dele, tudo o que
tinha lido sobre ele, todo o seu trabalho. Era difícil fazer dele um personagem
real. Então tive de esquecer tudo isso e trabalhar com a minha memória,
trabalhar com o que me lembrava acerca de tudo. Isso levou-me algum tempo. No
global, “ Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” foi um trabalho de 2 a
3 anos.
Qual era a
importância histórica daquela ponte? Hoje existem 4 pontes…
Estamos a
falar do “Corno de Ouro”. Existiu uma ponte romana do tempo de Constantino, mas
foi destruída nessa altura.
Foi a ponte
destruída no terramoto em “ Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes”?
Não. A ponte
destruída, no livro, pelo terramoto era minha. [risos] É ficção. Hoje, existe a
Ponte de Gálata, que é uma ponte basculante e situa-se, mais ou menos, onde a
ponte de Bayazid teria ficado se tivesse sido construída. Existem agora uma,
duas, três, quatro pontes. Exacto. Entre a ideia de Bayazid e a Ponte de Gálata
existem 400 anos de diferença. Ninguém tentou construir uma nova ponte.
O que é que o
motiva a misturar realidade com a ficção?
Michelangelo
zanga-se com o Papa, vai para França, e então recebe um convite do Sultão de
Istambul para construir uma ponte em Constantinopla. Eu disse: “Oh! Incrível!
Não sabia disto! É maravilhoso!” Depois descobri que era quase impossível ele
ter aceitado. Perguntei a historiadores e académicos sobre se ele teria estado
lá, e eles responderam que não, não tinha estado. Perguntei “Porquê?” Eles
responderam “Nós saberíamos!” [risos] Eu percebi que tinha de enviar-me para
lá. Foi como corrigir um “erro” histórico. Eu “vi” Michelangelo lá.
A relação
entre Michelangelo e Mesihi é uma metáfora sobre a relação entre Este e Oeste?
Sim, de certa
forma. O que me fascinou foi a oposição entre estas duas personagens. Nós
sabemos tudo sobre Michelangelo. Existem centenas de páginas escritas sobre a
sua vida, sobre a sua arte. Mas não sabemos quase nada sobre Mesihi. O trabalho
de Michelangelo é imenso. Nós temos esculturas, pinturas… O trabalho que
conhecemos de Mesihi resume-se a 20 páginas.
Michelangelo
morre rico e famoso. Mesihi morre pobre e esquecido. Tudo os opunha. Um gosta
de álcool e drogas. Michelangelo, não.
A única
personagem que tem voz própria é a dançarina exótica. Temos personagens como o
Papa, Michelangelo, Da Vinci, Mesihi mas a escolha foi a de uma dançarina. Por
que razão?
Ela é uma
personagem que vem directamente da Poesia. Ela veio do poema clássico persa.
Nós não sabemos se as personagens nesses poemas eram raparigas ou rapazes. Na
Pérsia, ou na Turquia, não existe a diferença, na língua, entre ele/ela. Na
poesia não se consegue saber se estão a falar de rapazes ou raparigas. Muitos
eram rapazes, mas os tradutores, no século XIX, escreveram “ela”. Tinha
conotação homossexual. Era realmente complexo. Por isso é que esta personagem é
tão incerta.
Li uma
entrevista com Charlotte Mandell [conversationalreading.com], sua tradutora de “Zona”, onde ela afirma que o livro “Zona” tem
exactamente o mesmo número de quilómetros da viagem de comboio entre Milão e
Roma. Foi com esse objectivo que escreveu 517 páginas?
[risos] Sim,
foi com esse objectivo. O número de quilómetros de comboio é mais longo do que
por estrada. Uma página é um quilómetro.
Em português
não podemos fazer isso, são 467 páginas.
Em francês e
em inglês conseguimos…
“Zona” é mais
espacial do que temporal? A narrativa segue os lugares por quais o comboio
passa. Não segue uma linha temporal rígida.
Tem duas linhas
temporais: a real linha temporal da viagem de comboio e outra não linear que
são as histórias que conto na viagem.
Em “Fala-lhes
de Batalhas, de Reis e de Elefantes” lemos, na página 119, “É verdade, Nós
todos macaqueamos Deus na sua ausência”.
Somos sombras
platónicas? Sombras imperfeitas?
Sim! Isso é
o que Michelangelo pensa. Ele tem uma educação neoplatónica. No século XV, os
últimos dos filósofos platónicos vão para Florença, Itália. [A educação de
Michelangelo foi feita, em grande parte, em Florença]. A sua educação é baseada
em ideias neoplatónicas. É ele dizendo isso.
No período da
Renascença, escritores e pintores criaram muitas obras de arte porque eram
contratados para isso. Neste caso, por exemplo, Michelangelo foi contratado por
Bayazid. Eles estavam dependentes do mercado. Hoje mantém-se essa dependência?
Sim, os
escritores mantêm-se dependentes, mas os patronos são menos…políticos. Continuamos
com patronos: as Editoras e o mercado.
Michelangelo
foi um dos primeiros artistas europeus a conseguir ser um artista livre. Ele
ganha a sua liberdade, no fim da sua vida. Mas a sua vida é uma luta por isso.
Michelangelo ama duas coisas: dinheiro e liberdade. E ele consegue-os no fim.
Ele podia dizer “Não” às pessoas.
Necessita, como escritor, da aceitação que
Michelangelo necessita no seu romance?
Provavelmente, provavelmente…
Não sou só
eu… Se vamos entrar nesta arte ou criação, todos necessitamos de público. De
alguma forma, nós dependemos dele, também.
Mariorufino.textos@gmail.com
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