1
“Tudo o que vejo está, por
princípio, ao meu alcance, pelo menos aos alcance do meu olhar, edificado sobre
o plano do «eu posso». Cada um destes planos está completo. O mundo visível e o
dos meus projectos motores são partes totais do meu ser”[i]
Concebe-se
a inter-relação com o mundo a partir do que se consegue alcançar.
O
olhar, o toque, alimenta a expectativa; esta relaciona-se com a visão, com o
movimento.
A
noção de possibilidade, de “eu posso”, encontra-se vinculada a esta relação.
Uma
criança, quando quer jogar “às escondidas”, tapa os olhos, julgando assim estar
invisível para o que o rodeia.
Ela
pode ver logo de seguida, quando o seu corpo é tocado, que a relação com o
mundo não se limita ao que ela vê e toca, mas, também, a ela como matéria vista
e tocada.
Ela
pode ser solicitada porque está presente, porque a sua presença se manifesta
nesta interacção.
A
realidade (pelo menos a realidade imediata) é conceptualizada pelos binómios
ver e ser visto, tocar (ou poder tocar) e ser tocado (ou poder ser tocado).
No
entanto, tudo sofre alterações quando a percepção se diferencia.
Uma
pessoa que não vê cria estratégias para interagir.
E
um bipolar, por exemplo?
Que
ideia do mundo ele recriou e que ideia o meio em que está envolvido criou
acerca dele?
A
matéria é a mesma, as pessoas são as mesmas, mas a forma de ver não é a mesma.
As
cores são mais ou menos intensas, carregadas; as vozes são demasiado audíveis
ou, pelo contrário, pouco perceptíveis.
O
mundo é o mesmo: amigos, família; mas, afinal, não é bem o mesmo mundo.
Tudo
se transformou, pensa-se, e, no entanto, fomos nós que mudámos para o mundo.
A
interacção torna-se problemática.
Eu
sou eu e as minhas circunstâncias, disse Ortega Y Gasset.
O
equilíbrio entre adaptar a vida à doença e não deixar que a doença nos domine é
ténue e difícil de manter. Somar-se e adaptar-se às circunstâncias…
Talvez
seja um dos objectivos mais difíceis nesta doença: a manutenção.
Ser
conservador quando se está equilibrado, entre quedas e subidas.
Alcançar
mais do que um período de repouso antes de se ser ocupado por esse inquilino misterioso,
esse estranho que cá dentro vive.
E
anseia-se (doentiamente) em se manter entre os pólos opostos. O chão que nos
suporta move-se, tornando-nos receosos de subidas e descidas que aparecem sem
pré-aviso.
Nesta
época em que realmente somos nós que dominamos a doença e não o contrário, a
consciência marca uma presença aguda, quase física, demonstrando quem fôramos
anteriormente.
É
a altura de mirarmos as consequências:
A
intensidade com que nós vivemos as palavras, os gestos e os acontecimentos;
perceber que fomos colonizados por um outro ser, um outro eu, que de mim é
componente, que falou pela nossa boca aquilo que não queremos pensar, não
queremos sentir e muito menos dizer.
Através
das acções exorcizámos o pensamento plural e contraditório e, assim, vertemos
para o domínio público o que em nós se passou.
Como
se pode explicar que a boca que fala não é a minha, mas a da doença? Como se
pode apelar a essa interpretação quando é a nós que vêem, e que nada da doença
nós temos de tangível para mostrar?
Apetece
ter uma radiografia e mostrar que é aquele ponto, aquele tumor (ou o que seja)
que nos faz isto, que é o nosso inimigo.
Esta
doença é um líder informal; debita as suas posições, opina pela nossa boca, mas
não se assume.
Em
qualquer das fases em que se está, a manutenção (ou criação) de rotinas é
imprescindível para a higiene mental.
Numa
situação de absoluto desregramento, o ritual disciplina o comportamento.
Certamente
já ouviram isto muitas vezes e nada de novo vos apresento, mas o apoio da
família e amigos é essencial.
As
ocorrências irão garimpar os amigos; ficam aqueles que são mais valiosos.
Dói
(muito), mas se nada é nosso, então muito menos tivemos aquilo que nunca o foi.
Há que perceber porque vão; não é uma situação fácil para quem junto de nós não
fica, mas, não se esqueçam, também nos perdem; também ficam sem nós.
Na
fase depressiva, suporta-se os dias nos ombros e (quase) se sucumbe a um peso,
hipoteticamente, maior do que a força.
“A minha alma está descosida e
dela tudo cai. /Estou cheia de nada, tudo o que cai a meus pés é pisado/ [sem
pena. Porque me custa sofrer.”[ii]
Sentimos
que não partilhamos a mesma linguagem, nem nos baseamos nos mesmos protocolos
de conduta.
Tudo
se escurece e a negrura cola-se-nos à pele, às mãos, à cara impedindo-nos de
respirar.
Somos
um ambiente hostil, que criámos e nele vivemos.
A
ausência de partilha isola-nos; ninguém lá fora sabe o que cá dentro chove.
A
alegria alheia é ofensiva, contra-natura e o sol sublinha a noite que em nós se
instalou.
Este
inquilino, este estranho em mim, mostra os dentes quando menos se espera.
Esta
tristeza minha é irmã dessa tristeza vossa.
É,
tal como a morte, igual para todos, mas cada um tem a sua morte pessoal,
individual e solitária.
O
raciocínio ausenta-se, as mãos demitem-se do movimento e o corpo quer que o
deixem em paz.
É-se
impermeável aos outros; a emoção é estéril.
Não
há objectivo na tristeza.
Lêem-se
os artigos académicos sobre a bipolaridade; entende-se a engrenagem do
sentimento, mas nenhum, ninguém, consegue demonstrar cientificamente o
desespero nos olhos das pessoas que gostam de nós.
O
objectivo da vida é a continuação, o adiar o inevitável, o términus que acabará
por acontecer.
A
morte tem algo de glórico, de pragmático. Existe para se consumar; o seu
objectivo mora em si mesmo e atinge-se na sua concretização.
(mas
continuamos a respirar)
Os
dias colam-se uns aos outros, tornando-se indistintos.
Os
medicamentos são o Norte e orientam-nos através das horas.
Somos
o que estamos e em nós nos consumimos.
Na
fase de mania, provoca-se acontecimentos e é-se agente (demasiado) activo sobre
o meio que o rodeia.
Absorve-se
tudo, é-se tudo em todo o lado.
“ Lá das alturas ela viu e fez
muitas coisas maravilhosas e algumas grotescas mas sentia-se tão forte que nada
lhe faria mal pois ela tinha O Poder para fazer O Bem.
(…) Encarnou poderes muito
superiores a qualquer outro ser humano.”[iii]
Tudo
aumenta e, por ser maioritariamente (muito) bom, considera-se o oposto do
mal-estar, da doença; no entanto, é um sintoma.
Accionam-se
acontecimentos sem se ter acabado os anteriores e tudo, mas tudo, o que não nos
acompanha nos agride; quem não partilha a alegria e a energia que nos motiva,
não nos compreende.
É-se
um tsunami que arrasta tudo e todos.
O
corpo é uma máquina infalível e insaciável. E o homem moderno, bipolar ou não,
é plural e pleno de incoerências.
A
produção laboral aumenta consideravelmente, sendo, no entanto, errónea e precipitada.
O
sexo torna-se uma (quase) obsessão animal, visceral.
A
verdade é-nos subserviente e tornamo-nos amorais, aquém e além do bem e do mal.
A razão é uma média aritmética e além de (só) se aplicar aos outros, somos nós
que a instituímos.
Deixamos
de ser quem somos para outrem, alguém que também sendo eu ou vocês, tomar de
nós posse.
Na
subida, deixamos para baixo aqueles que gostam de nós (sublinhe-se este alguém
que para mim tem determinados rostos; para si outros, mas com denominador
comum: gostam e ficam) e tornamo-nos viciados em estar bem, em estar
doentiamente bem.
Estando
livres da razão e da moral, o âmbito da acção torna-se brutalmente vasto.
Queria,
antes de terminar este texto, de vos dizer o seguinte:
A
aceitação da doença por nós tem que ser feita.
“Tornou-se mais fácil para mim
aceitar-me a mim mesmo como um indivíduo irremediavelmente imperfeito e que,
com toda a certeza, nem sempre actua como eu gostaria que actuasse. (…) quando
me aceito a mim mesmo como sou, estou a modificar-me”[iv]
Não
ocorrendo, hipotecamos a qualidade de vida, condenamos a tolerância alheia
perante nós e, principalmente, não conseguimos ajudar porque continuamos,
incessantemente, a precisar de ajuda e a consumir todos os recursos afectivos
que nos rodeiam.
“ Não podemos mudar, não nos
podemos afastar do que somos enquanto não aceitarmos profundamente o que somos.
Então a mudança parece operar-se mesmo sem termos consciência disso”[v]
A
psicoterapia é uma ajuda preciosa.
Acontece
muitas vezes quando entro para uma sessão lembrar-me da condição de Dante na
“Divina Comédia”:
Ele
desceu aos círculos do inferno acompanhado por Virgílio e, posteriormente, por
Beatriz
Há,
nestas companhias, um companheirismo que me diz para ir, para descer, para
descobrir-me, tendo medo, certamente, mas sem solidão, pois alguém está ali
comigo.
A
serenidade, no que me diz respeito, atinge-se quando nos transformamos em
palavras, acções que dão… simplesmente dão.
A
bondade é isso mesmo: dar, subordinar as nossas necessidades ao acto de dar.
Talvez
seja a melhor forma de derrotar a doença; sairmos de dentro de nós e dizermos
“estou aqui virado para ti e disponível para dar”.
Mário Rufino
Mário.coelhorufino@gmail.comhttp://www.healthline.com/health/bipolar-disorder/caregiver-support?toptoctest=expand
[i]
Merleau-Ponty, “O olho e o espírito”; Vega, 2000
[ii] Egéria,
“A espiral do amor” in Bipolar- Revista
da Associação de apoio aos doentes depressivos e bipolares Nº 37; pp. 21
[iii] Joana Plácido,
“Transmutações” in Bipolar- Revista da
Associação de apoio aos doentes depressivos e bipolares Nº 37; pp. 17
[iv] Carl
Rogers, “Tornar-se pessoa”; Moraes editores, 1985
[v] Idem
1 Comentários
Fiquei de "coração cheio" ao ler este texto.
Felicidades