“Irmão Lobo” é lobo com pele de cordeiro.
A falência de uma família, sobrecarregada
com dívidas e castigada pelo desemprego, é dramática. Quando a mesma família é
composta por um filho adolescente, uma filha quase adolescente e uma menina ainda
criança, além do pai e da mãe, então o dramatismo intensifica-se.
Carla Maia de Almeida (n. 1969,
Matosinhos), no seu 6º livro, utiliza este cenário tão
contemporâneo na construção de uma narrativa que incomoda e contraria o comodismo
do leitor. Ao contrário do que se possa supor, “Irmão Lobo”, editado pela
Editora Planeta Tangerina, não é um livro infantil. “Irmão Lobo” é um livro
sobre o amargo mundo dos adultos visto através da perspectiva fantasista e doce
de uma criança.
“Bolota”, a filha mais nova, conta a lenta
destruição da sua família, utilizando, para tal, dois tempos paralelos (passado
próximo e passado mais distante) que virão, perto do fim do livro, a juntar-se.
Os diferentes tempos são bem geridos pela autora, pois esta estratégia clarifica
acções e intensifica os aspectos emocionais. Se tal não bastasse, a produção
gráfica do livro denota o cuidado em ajudar o leitor na descodificação do
enredo: páginas azuis para o passado mais recente; páginas brancas para o
passado mais distante.
O facto de ser uma menina que se debate
com sentido dos acontecimentos atribui maior complexidade emocional à história.
“Tenho 15 anos e estou a um passo de
começar a minha vida, mas ainda não tive tempo de compreender tudo o que me
aconteceu até agora” pág. 11
Será com ela que o leitor chegará ao fim
do que a própria denomina de “Grande Travessia no Deserto da Morte”. Durante
esse trajecto, o leitor assiste à morte do mito e ao triste desaparecimento da
ingenuidade. Lentamente, Bolota vai desmantelando a fantasia, tão bem demonstrada
pelas alcunhas que atribui a cada estado anímico de cada membro da família, até
ter de enfrentar a realidade tapada pela teatralidade.
“As outras famílias colecionavam festas de
aniversários, fotografias de Natais felizes, férias no Algarve,
eletrodomésticos, que faziam tudo e cartões de desconto do hipermercado. Nós
colecionávamos alcunhas. E créditos bancários. Eram as únicas maneiras de
mantermos o nosso teatro a funcionar” pág. 21
Nesse “teatro”, o pai é, para “Bolota”, o
chefe da “tribo”, a quem ela chama de “Alce Negro”. O pai representa a força
moral, a coragem e o sonho. Ele é capaz de vencer todas as dificuldades, apesar
do alheamento adolescente dos irmãos e do frio pessimismo da mãe.
O território da família vai diminuindo
conforme se mudam para apartamentos cada vez mais pequenos, mas Bolota mantém a
idolatria pelo pai. Ele é o líder da tribo. Até cair.
E é aqui que Malik, o husky que vive com a
família, ganha importância fulcral no livro.
Quando Malik, o “Irmão Lobo”, ladra a
“Alce Negro” e este recua com medo, a queda do mito inicia-se. A partir desta
ocasião, as circunstâncias vão sendo clarificadas e afastadas da perspectiva
romântica. O fim já havia começado, mas só nesse momento “Bolota” ganha
consciência disso.
A prosa de “Irmão Lobo” sugere mais do que
aquilo que mostra. A autora deixa na penumbra o que cabe ao leitor descobrir.
É, de facto, um jogo de luz e sombra muito
bem ilustrado por António Jorge Gonçalves.
Carla Maia de Almeida, autora já publicada no Brasil, Holanda e
Colômbia, apresenta um livro muito diferente do anterior, “Onde Moram as Casas”
(Caminho, 2012). “Irmão Lobo” mostra que o maior drama pode residir nas coisas
mais simples, ou nas pessoas que são mais próximas.
Depressa o leitor chegará à conclusão de
que nada é o que parece.
“Irmão Lobo” é lobo com pele de cordeiro.
Mário Rufino
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