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Entrevista a Afonso Cruz








Afonso Cruz (n. 1971) é escritor, músico, cineasta e ilustrador.
A singularidade da sua voz literária e a qualidade da sua escrita têm conquistado leitores e prémios.
“Enciclopédia de Estória Universal” (Quetzal) foi distinguido com o “Prémio Camilo Castelo Branco”, enfatizando, desta forma, a qualidade do autor como contista.
“Os Livros que Devoraram o meu Pai” (Caminho), obra destinada essencialmente a um público juvenil, foi galardoado com o “Prémio Literário Maria Rosa Colaço”, em 2009.
“A Boneca de Kokoschka” (Quetzal) ganhou, em 2012, o “Prémio Europeu de Literatura”.
A propósito da sua obra, na generalidade, e do lançamento de “Enciclopédia da Estória Universal- arquivos de Dresner” (Alfaguara), o Diário Digital tentou aceder à mente labiríntica de Afonso Cruz.
O autor demonstrou ser uma pessoa culta, agradável e com um apurado sentido de humor.
Saímos vivos do labirinto, mas apeteceu lá ficar.
A entrevista decorreu nas “Correntes d´Escritas”, Póvoa de Varzim.



Deixa-me começar por um pormenor, se não te importas, que me suscitou muita curiosidade:
O que são “reticências cranianas” [em “Boneca de Kokoschka”]?
- [risos] Quando há hesitações na linguagem há uma paragem. Utilizas as reticências quando o cérebro não “funciona” [risos]


Quando estava a ler “Enciclopédia da Estória Universal - arquivos de Dresner” pensei no “jogo” entre escritor e leitor. Como leitor, não sei o que é, no livro, ficção ou realidade.
Foi um objectivo “jogares” com o leitor nesse aspecto?
-Sim. Eu acho que não é nada importante, na literatura, nós definirmos essas fronteiras. Podemos fazer noutras áreas, mas aqui não. A maior parte das vezes, conta muito mais aquilo que nós queremos dizer ou a maneira como dizemos do que a veracidade. Não importa muito se houve realmente um russo qualquer que um dia decidiu matar a senhoria mais a filha dela à machadada. O que importa naquela história não é isso. Acho que é mais valioso. Não é a veracidade que conta; é o que aquela história nos está a dizer. Apesar de haver uma ou duas entradas por cada volume que são totalmente verdadeiras. Na verdade, estas enciclopédias [vários volumes de “Enciclopédia da Estória Universal”] podiam ser coisas que realmente existiram, mas que não foram escritas.

Não é importante sabermos se é verdade ou não, mas fica sempre a dúvida se determinado personagem existe ou não.
-A maior parte deles não existe. Alguns são sobejamente conhecidos e dá para perceber imediatamente, mas outros não.


É um jogo com a verdade...
Sim, há algumas citações e alguns casos históricos que são muito mais impressionantes ou mais incríveis do que algumas situações da enciclopédia, mas os leitores também são muito mais exigentes com a ficção do que são com a realidade. "Se as pessoas entram num táxi e o taxista começa a citar Heidegger, não dizem “desculpa lá! Pára aqui o táxi, pois eu quero sair. Isto não é verosímil. Quero sair”. Na realidade aceitamos isso com alguma naturalidade. Se o taxista citar Heidegger, nós contamos aos amigos. E  não precisamos de explicações; não precisamos de saber como é que ele sabe, se lê ou se não lê...
Evidentemente que isto é preconceito. Qualquer taxista pode saber Heidegger ou outro autor qualquer. Aliás, ainda há pouco tempo fui à Feira do Livro de Bolonha, e o taxista que me levava para o hotel foi para uma rua completamente diferente por eu me ter enganado a dizer o nome da rua.
Fiquei a pensar: “ se não é assim que se escreve, como é que será?” E ele tirou um Ipad para eu procurar a rua. Depois perguntou-me o que é que eu estava ali a fazer. Eu disse que ia à Feira do Livro de Bolonha. Ele perguntou-me se eu ia como escritor ou ilustrador. Respondi que ia como escritor e ilustrador. E ele “Ah! Eu também gosto muito de ler”, e tirou um Kindle [risos]


...isso arruína todos os estereótipos...
Exacto!


Há uma intertextualidade forte nos teus livros, não só de temas mas também de personagens. Elas aparecem nas enciclopédias, em “A Boneca de Kokoschka”, e em outros livros.
Qual é o teu objectivo com esta estratégia?
Como na “Enciclopédia da Estória Universal” a maior parte das coisas são inventadas, uma das situações que torna tudo mais verosímil é quando há testemunhos, é quando há outras pessoas a comentarem o trabalho de outras pessoas.
Por exemplo, se houvesse um estudante qualquer que pegasse em “Enciclopédia da Estória Universal - arquivos de Dresner” a julgar que era verdade e fizesse um trabalho académico, de repente começava a ser verdade.
O próprio Cristo! É igual à nossa história. Especula-se muito se Lao Tsé existiu, e no entanto existem livros e existem muitos comentadores. Na verdade, o testemunho é que faz com que eles vivam. Se começarem a citar-se uns aos outros e a existir em sítios diferentes, eles começam a ter, de certa maneira, uma vida e uma história paralela.


Falaste de Jesus...
A dialéctica entre a Fé e o Positivismo ou Racionalismo é um dos temas centrais da tua obra?
Sim, sim... Não acredito em verdades absolutas. Há uma frase de Sampaio Bruno que diz “A verdade é um erro cada vez menor”.
Penso que a verdade será um somatório de infinitas opiniões. Se nós juntarmos essas opiniões todas sobre a verdade - claro que é impossível termos essas tais infinitas opiniões - nós poderíamos ter uma espécie de Verdade, ou, se quisermos, Deus.
Não quero, nem gostaria de excluir tanto naquilo que leio, nas minhas opiniões e em tudo o que quero compreender, nenhuma vertente do conhecimento. A Religião é uma forma de conhecer o Universo tão válida e importante quanto é a Ciência ou quanto é a Filosofia, ou a Ética ou a Matemática. Todas elas são muito importantes.


É possível compatibilizar a Fé e o Racionalismo?
Penso que sim... Há um filósofo de que gosto muito, cardeal Nicolau de Cusa, e que estou sempre a citar. Ele tem uma relação muito ligada ao absoluto e ao infinito. Ele diz que uma circunferência infinita é uma recta. Se nós começássemos a aumentar o arco da circunferência e se ela fosse infinita, então seria uma recta. É impossível. Uma recta não pode ser uma circunferência e, no entanto, se tivermos uma circunferência infinita, ela tem de ser uma recta.
Aqui entramos num mundo que nós não conseguimos apreender. Nós não conseguimos apreender que os dois opostos possam ser coincidentes. Ele chamava a isso coincidêntia oppositorum.


Tens conhecimentos que abrangem áreas distintas como a matemática...
Gosto de ler tudo e adoro geometria. Gosto muito de pensadores que tinham a ver com geometria. Platão dizia que na Academia as pessoas não entravam se não soubessem geometria.


O conhecimento é transdisciplinar.
É. Em certa medida, a matemática e a geometria são óptimos utensílios para compreender o mundo. Adoro alguns problemas matemáticos e algumas ideias da matemática que usei na outra enciclopédia. Por exemplo, o caso do hotel infinito em que podemos colocar duas excursões infinitas dentro de um infinito, algo que Nicolau de Cusa não podia acreditar. Gosto destas noções todas e, sobretudo, de noções marginais. Gosto muito de, por exemplo, todas as heresias. Eram críticas ao pensamento mais ortodoxo, ou seja àquilo a que nos habituámos a ter como matriz do pensamento.


Uma das entradas de “Enciclopédia da Estória Universal - arquivos de Dresner” é de um prédio que alegadamente é capaz de conter o infinito.
Exacto. Na Idade Média dizia-se que o infinito era o número dos tolos porque quando se começa a pensar nestes termos começamos a entrar nas contradições.


Em “A Boneca de Kokoschka” escreveste, na página 33, ““Não adianta andarmos à procura do Mal fora de nós. Temos de olhar cá para dentro e isso faz-se muito facilmente: se para vermos o que está fora, abrimos os olhos, para ver o que está dentro, fechamo-los com força”
É isto que um escritor faz? Fechas os olhos com força e olhas para dentro?
Há uma série de pensadores também marginais ao pensamento mais ortodoxo, mais canónico, dentro do judaísmo e catolicismo que, por exemplo, falam de uma espécie de homem cósmico com que nos podemos identificar. Eles dizem, basicamente, que todos nós somos esse homem. Não existe fora e dentro. O que está fora está dentro também. A noção de fora e de dentro é uma ilusão. Os budistas têm uma maneira muito interessante de descrever isto: a rede de Indra. Eles descrevem uma rede, onde, no cruzamento dos fios, há umas pedras preciosas. Essas pedras reflectem todas as outras pedras preciosas. Cada uma reflecte todas as outras, ou seja elas todas estão dentro daquela. Apesar de estarem todas separadas, estão dentro e fora da pedra preciosa. Plotino também tem praticamente a mesma situação em “As Enéadas”. Plotino foi um neoplatónico, em 250 depois de Cristo, por volta disso, e foi mestre de um dos padres mais importantes da Igreja (depois teve um final de vida pouco canónico. Hoje não se fala muito dele; a Igreja também não fala muito dele) chamado Orígenes.
Plotino disse que o sol tem as estrelas todas dentro dele e cada uma dessas estrelas tem todas as outras estrelas e o sol. Ele demonstra isso como uma espécie de boneca russa, mas com a particularidade de cada uma das bonecas encerrar dentro dela, além das que lhe são menores, todas as que lhe são maiores"

Há uma peregrinação interior, que presumo ser comum a todos os escritores, mas também passaste por muitos países. Houve a necessidade de procurar o exterior a ti?
Essa distinção não é assim tão linear. É no dia-a-dia, porque precisamos disso para sobreviver, mas em termos filosóficos não sei se acredito nisso do fora e do dentro. Acho que realmente quando nós olhamos para dentro é até fácil percebermos quase tudo dentro de nós.
Temos assassinos. Já quase toda a gente teve vontade de matar pessoas. A maior parte de nós não mata, mas temos aquilo tudo. Temos é em proporções diferentes, mas se nós pensarmos bem e nos concentrarmos em determinadas emoções, podemos ser toda a gente, ser uma espécie de humanidade.


Isso não terá ligações com a Moral? Estou a pensar na moral cristã...
A Moral não é absoluta; é sempre relativa. E só serve à nossa sobrevivência. Se matar for um acto que permita a sociedade sobreviver, há muitas sociedades que optam por um tipo de moral um pouco fora daquilo que é a moral cristã.
O Chesterton, que era católico, acreditava que a moral era absoluta e que não seria de estranhar que uma pessoa chegasse à lua e houvesse lá um cartaz a dizer “Não Matarás”. [risos]


Notei muitos aforismos. Procuras utilizá-los?
Gosto muito de aforismos. Não sei se te referes aos diálogos ou à enciclopédia...


Nos dois casos, embora seja mais visível nas enciclopédias. Mesmo a nível estrutural: os capítulos são curtos. Há o desenvolvimento do  capítulo e depois há tentativa de sintetizar.
Os capítulos curtos devem-se a uma questão de ritmo e isso tem a ver com ter alguma dificuldade com as descrições. Não perco muito tempo. Vou basicamente ao que interessa. Tento chegar ao osso e passar uma série de etapas.
Gosto de aforismos, pequenas anedotas, parábolas porque é a maneira mais lúdica, mais engraçada, de contar e de comunicar coisas sérias.


Em “Os Livros que Devoraram o Meu Pai” escreves o seguinte: “porque nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-énes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros. É de histórias”
Em “A Boneca de Kokoschka”, dizes que todos nós temos a nossa boneca de kokoschka.
Nós adaptamos a nossa verdade? Contamos as nossas próprias histórias?
Penso que todas as nossas vidas são histórias. É a nossa maneira de ver, de contar, e não é necessariamente a verdade. É a nossa opinião.
Há um livro muito interessante de Luigi Pirandello chamado “Um, ninguém e cem mil” que fala sobre isso mesmo, neste caso da identidade. Ele um dia apercebe-se que não é exactamente como julga que é. Então começa a perceber que ele é milhares de pessoas, pois cada pessoa tem uma opinião sobre ele. Ele próprio vai mudando a opinião sobre si. Começa a entrar num jogo de espelhos quase infinito.
Em relação às histórias, penso também que as histórias são uma espécie de reencarnação hinduísta porque se me perguntarem qual é a coisa mais importante ou qual é a coisa que quero salvar minha, não penso que queira salvar o meu corpo ou o carácter. Isso não está sequer em questão. Gostava de preservar as minhas ideias. Há um livro espectacular de teatro chamado “The Pillowman” [Martin McDonagh]. Passa-se numa ditadura; são uns polícias a fazer perguntas a um escritor. Quando lhe perguntam o que é que ele gostava mais de salvar, ele diz “são os meus livros”.
As histórias, em certa medida, são o mais importante que eu tenho; é aquilo que tenho para contar e, de repente, há outras pessoas a lerem aquilo e há outras pessoas a pensarem aquilo que eu estou a pensar, também.
É isso que eu quero salvar.
Realmente, nós somos terra. Não há diferença nenhuma entre nós e a terra. Se analisares um bocado de terra, vais ver que tem ferro, alumínio, tudo aquilo de que nós somos compostos. Aliás, não é por acaso que “Adão” significa barro, “Húmus e “Homem” têm a mesma raiz.
Quando somos enterrados, passados uns anos, já não nos distinguimos de nada. Passámos a ser, realmente, terra. Mas conseguimos salvar as ideias que passam de pessoa para pessoa, de geração para geração, e isso eu valorizo imenso.
Nós, realmente, somos histórias.


Trabalhas a linguagem de forma diferente quando escreves um livro como “Os Livros que Devoraram o meu Pai”, direccionado para o público juvenil, ou “A Boneca de Kokoschka”? Tens essa preocupação?
Quando é para jovens evito algum vocabulário ou, no caso de remeter para ideias complexas, tento que superficialmente o livro possa ser lido sem grandes complicações. Mas gosto que mantenha um subtexto que os leve a outros lugares, no caso de eles quererem saber mais.
Não precisam de ler Dostoiévski, ou os livros que estão lá [em “Os Livros que Devoraram o Meu Pai”]. Acho que a história fala por si, mas se um dia lerem aqueles livros é uma mais-valia.
O mesmo acontece nas enciclopédias. Há vários exemplos disso. Há entradas que parecem muito ingénuas, mas que se nós formos pesquisar a raiz daquele pensamento é algo que considero muito importante.

Mário Rufino

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=624640

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