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O meu texto, no Diário Digital, sobre este excelente livro
Há uma vasta e intensa história em “A
Lebre de Olhos de Âmbar – uma herança escondida”
Edmund de Waal, descendente da outrora
poderosa dinastia Ephrussi, resgata a sua família, composta essencialmente por
judeus, do esquecimento.
Durante os 3 anos de investigação para
escrever esta obra, o autor acompanhou os passos dos seus principais
ascendentes, passou por um processo de autoconhecimento e analisou momentos
essenciais para a compreensão da História Mundial, entre o fim do século XIX e meados
do século XX.
O amor pela Arte está presente desde o
início até ao fim do livro.
Tudo começa num ritual. Edmund de Waal
almoçava, semanalmente, com o seu tio-avô Ignace Ephrussi (1906-1994). Quando
Ignace (Iggie) faleceu, de Waal recordou, de forma similar a Charles Swann em
“Em busca do tempo perdido”, esses almoços que terminavam com conversas
defronte da vitrina que guardava os netsuke.
Os netsuke são pequenas esculturas
japonesas feitas em osso, marfim, ou madeira com acabamentos em âmbar ou
resina. Serviam para os homens pendurar no Quimono, vestuário tipicamente
japonês e que não tinha bolsos, bolsas para o tabaco, cachimbos, instrumentos
para escrita, etc.
Esses momentos no apartamento do seu
tio-avô em Tóquio seriam o início de uma grande viagem no rastro dos netsuke.
De Waal torna-se participante num ritual
existente há mais de um século.
“Poder passar de mão em mão um pequeno objecto
escandaloso era um passatempo favorito na Paris dos anos 1870. As vitrinas
tinham-se tornado essenciais para pequenas pausas espirituosas e galantes”
pág.. 67
O tacto assume importância vital na
percepção da realidade.
Amante da arte e detentor de vasta
riqueza, Charles Ephrussi, depois de várias viagens em que adquiriu diversas
obras de arte, instala-se em Paris. Ele virá a ser o primeiro Ephrussi a ter as
estatuetas japonesas.
Charles era neto do “Abraão” da família,
Charles Joachim Ephrussi que, desde a cidade russa de Odessa, projectou a
expansão do império da família pela Europa através da criação de empresas na
área financeira, ou através de casamentos com famílias judaicas bem escolhidas.
Os seus filhos, Leon Ephrussi e Ignace von Ephrussi, foram enviados para Paris
e para Viena, respectivamente.
Na época em que Charles Ephrussi se
instala em Paris, após várias viagens, já o seu pai Leon Ephrussi, havia
prosperado de forma assinalável. A família era apelidada de “Os Reis do Trigo”.
Nos clubes e em soirées, a arte era
debatida e apreciada por várias personalidades (Vítor Hugo, Alexandre Dumas, Proust)
que viriam a marcar esse século. Além de várias colecções de arte (pinturas de
Renoir, Monet, Degas, por exemplo), de diversas “correntes” artísticas, Charles
interessou-se pelo “admirável mundo novo” do Japonismo. Influenciado por esta
“escola”, adquire os 264 netsuke, que foram expedidos de Yokohama.
A disponibilidade para apoiar vários
artistas, comprando as obras e incentivando-os a produzir, transformou-o em
figura essencial na vida artística de Paris.
Marcel Proust baseou, em parte, a personagem
Charles Swann de “Em Busca do Tempo Perdido”, em Charles Ephrussi.
“É demasiado estranho ver como coincidem as
trajectórias de Charles e de Swann de Proust. Vão-se repetindo os lugares onde
Charles Ephrussi e Charles Swann se cruzam” pág. 105
No entanto e apesar de toda a sua
dedicação, continuava a ser repudiado por facções anti-semitas, que viriam a
crescer decisivamente com o Caso Dreyfus. A situação social da família Ephrussi
e de todos os outros judeus piora drasticamente.
Esmorecido o interesse pelo Japonismo, que
se tornou banal, Charles enviou os netsuke como prenda de casamento para o seu
primo Viktor, que morava em Viena.
Viena era uma ilusão que cobria, até um
dramático momento, o anti-semitismo e o hedonismo.
Na época em que os netsuke chegaram à
cidade era possível a um deputado discursar no Reichstrat propondo recompensas
pela morte de judeus.
O anti-semitismo em Viena é muito mais
agressivo.
Viktor Ephrussi, o banqueiro judeu primo
de Charles Ephrussi, vê os seus negócios piorarem devido à Guerra do império
austro-húngaro contra Inglaterra e a Rússia. Há muitas manifestações contra os
judeus.
Quando os checos conquistam Praga, eles
repudiam a soberania dos Habsburgos e proclamam a independência. O império
austro-húngaro é dissolvido. Áustria torna-se uma República.
Os negócios de Viktor entram na
bancarrota.
Os 4 filhos de Viktor e de Emmy dispersam-se:
Elisabeth, que será a proprietária seguinte dos netsuke, está na Suíça; Iggie,
que receberá os netsuke de Elisabeth e os entregará a Edmund de Waal, está em
Hollywood; Gisela e o marido fogem da guerra civil espanhola e vão morar para o
México.
O Nazismo tem cada vez mais força. Estamos
em 1938 e prestes a entrar na II Guerra Mundial (1939-1945).
Quando a Áustria se alia à Alemanha, os
judeus começam a ser perseguidos. Hitler entra em Viena e o Palácio da família
é confiscado. As forças alemãs, recebidas em júbilo pela sociedade austríaca,
saqueiam o palácio. Levam quase todas as obras de arte. Os netsuke, que haviam
perdido toda a importância ao ponto de serem vistos como brinquedos, não são
levados.
Viktor é obrigado a assinar um documento
que o faz perder o património que era da família há mais de 100 anos. E sai de
Viena.
A criada Anna é a única que fica e será
ela a guardar, debaixo do colchão onde dormia, os 264 netsuke que virá a
entregar, já acabada a guerra em 1945, a Elisabeth.
Em 1947, Iggie vai jantar a casa da irmã.
Estava indeciso em sair de Hollywood e voltar a trabalhar no Congo Belga, ou ir
para o Japão entretanto ocupado pelos americanos. Foi então que viu as
estatuetas japonesas.
“Vou para o Japão”, disse à sua irmã
enquanto olhavam os dois para a vitrina. “Levo-os de volta”
O círculo fecha-se.
Já com o Japão descaracterizado pela ocupação
e aculturação americana, de Waal, anos mais tarde, vai para Tóquio ao abrigo de
uma bolsa de estudo dada por uma fundação japonesa.
Com o falecimento de Ignace Ephrussi,
Edmund de Waal herda a responsabilidade, simbolizada em 264 netsuke comprados por
Charles Ephrussi, de continuar a história da sua família.
“Um netsuke é pequeno e resistente, não racha nem
quebra com facilidade: foi feito para andar aos tropeções pelo mundo. (...)
Cada netsuke retirado da vitrina é um acto de resistência contra o presente,
uma história recordada, um futuro esperado” pág. 255
E decide conhecer o caminho que os netsuke
percorreram.
De Waal consegue aliar, com muito sucesso, a vertente mais académica (investigação) com a ficcional. A fluidez da transição de um prisma para o outro permite ao leitor saber o que vem directamente das consultas concretizadas pelo autor e o que vem da criação ficcional. A narrativa, devido a essa fluidez, não é prejudicada pelas mudanças de perspectiva.
As estatuetas japonesas foram o motivo
para o autor viajar, ler e, como em qualquer ficção, ser todas as personagens
que, até certo ponto, criou.
“A
Lebre de Olhos de Âmbar - uma herança escondida” é uma conjugação muito
bem-sucedida entre biografia e ficção. Edmund de Waal partiu para esta aventura
com o objectivo de conhecer melhor a sua família. Conseguiu muito mais do que
isso.
“Já não sei se este livro é sobre a minha família,
sobre a memória, sobre mim mesmo, ou se será ainda um livro sobre pequenos
objectos japoneses” pág. 310
“A Lebre de Olhos de Âmbar - uma herança
escondida” é uma viagem de auto-análise, de conhecimento genealógico e de
reflexão sobre factos políticos que foram dramáticos para milhões de pessoas.
My rating: 4 of 5 stars
Mario Rufino
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