Cicatriz
(de "O Engano")
Os meus dedos dobram a carta pelos mesmos vincos,
agora frágeis e enegrecidos pelo tempo. Visito esta folha, esta única folha com
uma só frase, e resgato, ritualmente, as suas palavras ao passado.
«Quando te quiseres vingar…»
Trago-as sempre comigo, desenhadas no papel dobrado
e marcado pelas sombras sanguíneas dos meus dedos, dentro da carteira, dentro
cabeça, dentro de tudo o que faço.
«… estarei à tua espera.»
Enfiou-me a carta no bolso e encostou-me a faca à
cara. Eu pensei que ele tinha roubado o dinheiro e não quis saber, pois estava
aterrorizado pela lâmina na minha pele. Os meus braços estavam presos, e a
força havia sido esgotada numa luta sem glória.
Faca na cara. Ele fazia-a rodopiar sobre a ponta,
como se fosse um pião, na minha testa. «Espero
por ti» e empurrava devagar.
Finalmente, aliviou o peso do seu corpo que prendia
o meu, e comecei a mexer-me devagar. Tentei levantar-me, ergui a cabeça, mas o
pescoço sucumbiu ao esforço. Senti os meus cabelos a serem puxados e a lâmina a
marcar uma linha vermelha de carne, sangue e medo, desde o ouvido à boca. Antes
de ele fugir, sussurrou uma acidez que me tem corroído dia após dia.
«Não morres, porque eu não quero. Viverás em vergonha contigo mesmo até
ao dia em que te quiseres vingar»
Durante anos e anos, disse e repeti «não quero
vingança! Não quero nada! Só o esquecimento!». Mas todos os dias me olhei ao
espelho e todos os dias a linha cicatrizada renovou a memória. As palavras revoltaram-se,
«Não quero vingança», libertaram-se da pele de réptil e adquiriram novas
tonalidades, «Não quero vingança?», novos brilhos, «Não quero nada?», e
surgiram pungentes, cheias de vida e de sede e com o sentido alterado.
«Não! Quero vingança!»
Mário Rufino @copyright
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