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Estética, Literatura e Ensino


Estética, Literatura e Ensino



Estética, Literatura e Ensino

De uma forma consensual, é reconhecido a Baumgarten (1750) o estabelecimento dos fundamentos de pensar e escrever sobre o estudo que diz respeito à beleza, às artes, ao receptor e ao artista.
Falamos da «Estética» de Baumgarten definida como ciência da cognição sensível, que atribui grande importância aos sentidos como fundamentação dos juízos, considerados, até então, pertencentes ao domínio inferior do conhecimento.
Este autor foi decisivamente influenciado por Wolff, conhecido como o autor do termo «consciência».
No que à literatura diz respeito, a mesma não se deixa aprisionar numa definição. Como podemos definir algo que se baseia em conceitos como beleza, estranhamento, originalidade? Não podemos; e vislumbramos a literatura como um conceito mutável e infiel ao tempo.
Apesar da tentativa de apreendê-la num conjunto de obras ou autores denominados de cânone, a verdade é que a literatura não se limita a esse conjunto. Deixa, isso sim, ser representada pelos mesmos para, algum tempo depois, aparecer representada noutras formas de diferente beleza mas continuamente estranha e original.
A palavra literatura deriva do latim, de littera,ae, e significa o ensino das primeiras letras. Ao longo do tempo, modificou-se o sentido para arte das belas letras, ou arte literária.
Levanta-se imediatamente alguns problemas: “arte”; “belas” (que não poderemos discutir aqui) e a percepção imediata da subordinação da literatura à letra, subestimando a chamada (agora) literatura oral (o som não veio antes do símbolo?). Falamos de literatura, principalmente, quando nos referimos a documentos escritos ou impressos. Pensemos que se Pessanha continuasse a ler os seus poemas sem os escrever não poderíamos considerar Clepsidra como uma obra marcante da literatura portuguesa.
Quando falamos em obra literária pensamos em objecto palpável e não numa sequência sonora. É curioso pensar que a poesia só se completa quando lida em voz alta...
A civilização toma consciência de si própria através da escrita projectando a mensagem através do diferimento da leitura da mesma.
Para Massaud Moisés, por exemplo, a ideia de uma literatura oral, popular, é simplesmente folclore e só tem status literário quando é escrita. (A hierarquização, a competitividade é uma constante na criação literária e na análise literária como iremos ver neste ensaio.)
No entanto, Alfonso Reyes não partilha da mesma opinião, pois, em rigor, a literatura é oral por essência devido à anterioridade do som ao carácter gráfico. O adiamento da apreensão do sentido acontece por limitações de memória e de transmissão às novas gerações. Tentamos enganar o tempo. É uma fatalidade histórica.
Hoje temos, obviamente, novos recursos que nos permitem arquivar informação com clara influência na ampliação do conceito de texto. No entanto, nem todo o texto escrito é classificado como literário. Apesar de todo o texto se destinar à leitura, não se categoriza todo o texto como literário. E confrontamo-nos com a questão: o que é literatura?
Por mais esforços que façamos o problema não se resolve porque falamos em conceito e não em definição de literatura.
O conceito de algo caracteriza-o como acidental ou particular e decorre de impressões subjectivas. Quando falamos em beleza notamos a incapacidade de tornar o conceito em definição, ou seja, de reunir características que sejam universalmente aceites.
Alfonso Reyes afirmou que, das três formas principais de actividade produtiva do espírito, a filosofia ocupa-se do ser, a história e a ciência do suceder real e a literatura do suceder imaginário, composto por elementos reais mas construído num outro plano de existência.
Uma situação é certa e real: a linguagem não se limita a ser um meio de comunicação.
Literatura implica vontade de ser diferente, vontade de se estar noutro lugar.
A diferença entre a linguagem literária e a comum reside no cultivo deliberado, por parte da primeira, da forma que organiza, aperfeiçoa com um propósito artístico.
Não aprofundaremos este assunto porque é demasiado vasto e não é o leit-motiv deste ensaio. É um assunto não para um simples ensaio mas para uma (ou várias) tese de doutoramento (provavelmente condenadas ao fracasso se o objectivo for conseguir definir a literatura).

A literatura ensina-se?

Consegue-se ensinar algo que não conseguimos definir?
Da mesma forma que o Amor e a Fé, a Literatura pode ser conhecida de forma parcial mas, na sua essência, não se aprende, frui-se; é individual e intransmissível.
É possível conhecer o que é, por exemplo, um género literário, o que a História Literária diz acerca disso, quais são as circunstâncias socioculturais das produções literárias. Esta aprendizagem é possível e ajuda a contextualizar a parte principal, aquela que pertence ao foro íntimo e que não é possível descrever de forma sistemática.
Quando abordamos o ensino da Estética é difícil sabermos o que ensinar. Deixamos de falar da história e da teoria que se aprende como qualquer outra disciplina.
O contacto com uma obra de arte é um processo intuitivo de desenvolvimento pessoal e de personalidade.
Para José Gil (1999) as fases de percepção artística, e inerente natureza, são as seguintes:
- Começa-se por olhar um objecto considerado uma obra de arte e tem-se uma percepção trivial. Depois do olhar ultrapassar as formas triviais vê-se estruturas e materiais diferentes que não são imediatamente visíveis.
Algo se desloca no quadro que faz com que o olhar descubra outras relações. O olhar passa das formas triviais (uma casa ou uma natureza morta) para as relações de textura, de espaço.
Ainda não é o espaço da forma estética.
“ De certo modo, estas estruturas espaciais que descubro estão separadas das formas triviais, aparecem por contraste e, ao mesmo tempo, por aderência. Vão aderindo, por que são estruturas espaciais dessas formas triviais”
Numa fase distinta, obtém-se a percepção estética, a que José Gil chama de percepção de forças. Quando se diz que um quadro é triste e melancólico estamos a caracterizar um conjunto de forças que dão uma linha, uma forma de todas elas.
“ A percepção estética final é a percepção da forma de uma força”
As forças aparecem devido a uma deslocação da relação entre as formas triviais e espaços encobertos, abrindo uma ruptura na percepção do quadro.
Através da entrada no quadro e consequente viagem no mesmo, o espectador estabelece uma conexão ou comunicação indispensável para a percepção estética.
Em relação à interpretação, o espectador caminha pelo percurso imaginativo do artista. Ao imaginar-se percorrendo o quadro existe um movimento de qualquer coisa que não é um corpo próprio dentro de um espaço topológico; José Gil denomina esta situação de ponto-corpo ou ponto-material.
“Toco (se for um quadro com características hápticas) com o olhar, como se fosse o meu dedo a sentir a rugosidade ou o liso da textura.
Há como que uma pele que ali se passeia, mas que não é de um corpo. É também um ponto abstracto, porque posso entrar num abstracto. É um ponto-corpo, porque é um ponto que é um corpo e que pode deixar de o ser, pode aderir a uma superfície, a uma cor, pode reduzir-se, pode quebrar-se em mil fragmentos. Segue o movimento da imaginação, que é o movimento dessas forças que vimos aparecerem debaixo das estruturas triviais, nas frinchas entre as formas triviais e os espaços”
A imaginação molda e transforma o corpo. É o espectador que completa o quadro. (O pensamento de Merleau-Ponty em “O olho e o espírito” é uma excelente leitura sobre esta matéria.)

Abraham Maslow insistiu na criação de um modelo educativo que assentasse na educação estética pois, actualmente, o ensino resume-se a um conteúdo profissional. O objectivo seria a auto-realização dos alunos e o seu desenvolvimento pessoal.
O problema é saber em que consiste a arte e a estética daí imanente...
A literatura como objecto estético não é ensinável.
O que pode ser transmissível são as características particulares, os cenários históricos específicos. Esta base factual que serve para os exames e análises qualitativas/quantitativas da sabedoria.
Este ensino de tipo institucional, abrangendo matéria e modo de ensinar, obedece sempre a opções políticas determinadas. As obras/autores ensinadas/os inserem-se numa política de senso comum com origem em grupos ou classes que defendem os seus interesses. É aquilo a que chamamos de “sistema” quando não conhecemos a face ou o nome de quem promove o caminho denominado de normal.
Qualquer tipo de educação é uma prática profissional que tem o objectivo de fornecer às pessoas determinadas vertentes da experiência social que são partilhadas no interior de dada sociedade. Exemplos desta situação são o conhecimento do universo, normas sociais, crenças, ideologias, aptidões e práticas do quotidiano, etc.
O processo de socialização passa pela apropriação e assimilação desta experiência pelos indivíduos. O sistema de ensino é um pilar fundamental da sustentabilidade deste processo.

Não se ensina literatura da mesma forma que não se ensina a amar, a ter fé, a ser bom (bondade); pode-se influenciar através do nosso sentimento, do nosso entusiasmo, como professores, e de uma imersão cultural que valorize a leitura. O que se pode ensinar é a atitude dialógica com a arte, a capacidade de ver além do mundo significativo e, também, de nos relacionarmos pessoalmente com este mundo com total abertura e enriquecimento com os significados descobertos.
O principal é a transmissão do usufruto pessoal, da estranheza, do incómodo que determinado texto, determinado autor nos causa. Apesar de, como Ricoeur afirmou, a transmissão exacta do que eu sinto seja impossível; na recepção da mensagem ela é adaptada a quem sente.

Mário Rufino
08/2006

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