Caro aluno e leitor,
Permite-me, antes
de tudo, tratar informalmente o meu amigo. Somos da mesma família e partilhamos
as mesmas preocupações.
Hesitei em
escrever-te devido à minha incapacidade em ser sucinto. A minha ideia era
adaptar a mensagem à forma vigente de comunicação, mas não consegui. Tentei
enviar um SMS, mas não deu resultado. "Não
leias" pareceu-me muito redutor. Tentei uma mensagem electrónica, mas
mesmo assim não fiquei satisfeito. "Não
leias. Não percas tempo a ler só por ler. Pratica desporto. Tens mais sorte com
as raparigas" pareceu-me
melhor, mas insuficiente. Perdoa-me, mas tem de ser por carta.
Aflige-me perceber
que estragas o teu tempo a fazer autópsias. A barriga rebela-se e agiganta-se
durante o tempo em que estás sentado. Não te admires que ela te tape a visão.
Diz-me..porque
perdes tempo a autopsiar um cadáver quando podes saber como foi a sua vida? Não
és tu aborrecente? Ou já não passaste tu pela adolescência? Puxa pelo pouco de
positivo que tem essa fase e insurge-te. Há direitos adquiridos. Tu não tens de
ser torturado.
Estuda. Deves
estudar Literatura. Não sei muito bem o que é Literatura, mas deixemos isso
para depois. Tens de estudar, lamento, mas terás oportunidade de te vingares.
Quando acabares os
testes, agradece à professora ou professor o facto de te ter ensinado tanto
sobre economia doméstica. E explica-lhe, pois certamente ela/ele não vai
entender. De tanto ouvires falar de narrador omnisciente, discurso directo,
indirecto ou diabo-a-sete, de fazeres um levantamento do vestuário que as
personagens usavam em "Os Maias", por exemplo, de caçares
interjeições na "Odisseia" de Homero tu juras por tudo que não vais
cometer a ousadia de gastares dinheiro com um livro! Afirma com todas as tuas
células que jamais te passará pela cabeça tentares perceber, após aquela tortura
medieval, o que é a Literatura. Deus te valha! Que te sirva de lição! Olha bem
para a figura dos professores!!!
Certamente fazem
parte da elite que começou a ler "Guerra e Paz" antes de provar
alimentos sólidos e já sabia ler, escrever e compor poesia antes de andar.
Diz-lhes isso e lamenta, do fundo do coração, a sua sorte.
Aprende!
Felizes são
aqueles que começam a ver o Patinhas quando são crianças e ainda não sabem ler.
Observa!
Se te disserem que
nasceram entre livros, repara bem se não sofrem de asma devido ao pó! É o único
efeito que os livros têm naquela idade. Os pais deviam ser denunciados à
Segurança Social por deixarem uma criança pequena, desprotegida, pegar em
"A Divina Comédia".
Deixa-me dar-te um
conselho, dentro dos meus limitados conhecimentos:
Chateia quem pensa
que estabelece as regras. Eu sei que já o fazes, mas aprende a fazer melhor.
Quando te derem um livro para ler, pergunta "Porquê
este e não outro?"; quando te pedirem para dissecares o conteúdo,
pergunta "Porquê assim e
não assado?» E não fiques por
aqui! Espera o contra-ataque. Eles vão ripostar. Convém estares preparado. Vai
a uma biblioteca e lê o livro que os professores te disseram para ler e mais
uns quantos que pensares serem apropriados. O critério de escolha depende de ti.
Escolhe por peso, tamanho ou proximidade. Mas pega neles e lê. Depois, quando
te disserem que tal livro pertence ao programa da escola, insiste «Porquê?». Vão ficar furiosos
contigo. Acredita. O meu filho faz-me isto e resulta sempre. Não baixes as
defesas! Não te deixes surpreender quando te perguntarem "Então...diz-me lá...o que é
que tu lerias?" Na
realidade, eles não querem saber o que tu queres ler. E pensam que tu não sabes
responder. Sorri e questiona-os sobre o que acham deste ou daquele livro. Olha
para a face e repara na mudança de pigmentação na pele. Faz-lhes perguntas... Não
sobre o narrador, por amor a Deus!!! "Que
tipo de relação é que determinado livro tem com outro livro?" "E o
autor? Que influências é que teve?" "Poderá dizer-se que a
interpretação do texto é plural ou está consolidada nos manuais?"
Por esta altura
mandam-te embora, mas tu já tiveste a tua vingança. Olha...faz isto só no fim
do ano lectivo. Por muito que batalhes, vais ter sempre de escrever sobre a
omnisciência do narrador desde o primeiro teste até ao último. Vais aprender
uma lição muito triste. As pessoas não gostam de que lhes façam perguntas para as
quais não sabem as respostas. É como os políticos. Antes de irem para os
debates precisam de saber, mais ou menos, quais são as perguntas que estão
estabelecidas.
A carta já vai
longa. Não prometo que não te volte a escrever. Se precisares de ajuda...
Abraço e força!!!!
Tem paciência!
Mário
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