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Prémio Nobel Herta Müller: «A realidade incita-me a escrever pelo lado que me agride»



Herta Müller, prémio Nobel 2009, esteve em Portugal com o objectivo de divulgar o seu mais recente livro, «Já então a raposa era o caçador», um dos destaques da rentrée da D. Quixote.



A apresentação da obra ficou entregue à escritora Lídia Jorge, a Aires Graça, tradutor desta e de outras obras da escritora romena, e à própria autora. A moderação coube a João Barrento.
Foi numa sala cheia, no Goethe-Institut, que leitores de diversas nacionalidades tiveram oportunidade de enriquecer as suas leituras com as perspectivas e interpretações dos intervenientes.
A produção literária de Herta Müller alimenta-se do medo e do profundo desenraizamento da escritoraA autora nasceu numa aldeia romena habitada por uma minoria de falantes de alemão (Nytzdorf). Passou por interrogatórios, ameaças da Securitate e despedimento por discordância política.
O seu pai era oficial da SS quando a Roménia se aliou à Alemanha, na II Guerra Mundial. Pouco antes do fim da guerra, a Roménia mudou de posição política, pois passou para o lado da URSS. Ainda com a guerra a decorrer, Estaline ordenou a deportação de milhares de romenos alemães. Entre eles estava a mãe da autora.
«O medo era omnipresente e o indivíduo não contava para nada», afirmou a autora durante a apresentação. Nos seus livros, Müller interroga tudo de forma dura, tensa e sem piedade. A escrita incide sobre elementos que a repulsam. «A realidade incita-me a escrever pelo lado que me agride».
A linguagem é um instrumento para exorcizar e processar todas as experiências traumatizantes por que passou. «Estou danificada e preciso de suportar isto, esta bagagem», referiu durante a apresentação.
São esses danos e esses traumas que a motivam a escrever. É na sua própria experiência que baseia as histórias dos seus livros. As personagens por si criadas são sujeitas às mais diversas violências e são confrontadas com uma incompreensível arbitrariedade.


«Já então a raposa era o caçador» é uma construção literária composta por frases simples e claras que transportam angústia e dotam a prosa de uma acutilância que limita a distância confortável do leitor em relação ao texto.
Se há algo que possa ser matéria de celebração nos seus livros, é a linguagem. É através da manipulação da linguagem que a escritora tenta construir uma nova perspectiva, uma visão que possa resgatá-la da sua própria criação. Ao reestruturar a linguagem tem a possibilidade de reestruturar a perspectiva sobre a realidade. Mas inevitavelmente tudo é contaminado pelo medo.
Lídia Jorge abordou, também, a problemática da linguagem como instrumento de mediação entre nós e a realidade. Além disso, a autora portuguesa realçou a importância da escrita como registo de vida e exercício de memória.
Por sua vez, Aires Graça demonstrou, através de diversos exemplos, a dificuldade que as diferentes línguas colocam ao tradutor quando ele se propõe transferir a imagética de uma língua de partida para uma língua de chegada.
No conjunto, as intervenções abordaram o texto literário por vários ângulos, de forma a proporcionar leituras mais profundas da obra da escritora romena.
Herta Müller é uma fonte de interrogações sobre ela, sobre a sua relação com a(s) língua(s), com a Roménia (país natal), com a Alemanha e com a sua própria pertença e identidade.
«Já então a raposa era o caçador» é um exercício de confrontação do medo, de procura de identidade, de catarse.

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