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“Garman & Worse” de Alexander Kielland



“Garman & Worse”

Alexander Kielland é um autor norueguês do final do século XIX, que, juntamente com Henrik Ibsen, Bjornstjerne Bjornson (Nobel) e Jonas Lie, faz parte dos quatro escritores mais importantes dessa época.
A sua sensibilidade para as questões sociais está bem patente na sua mais importante obra, “Garman & Worse”, traduzida por João Reis e editada pela Eucleia Editora (2010) e Cavalo de Ferro (2017).

I
“E enquanto os anões esforçam os olhos para ver acima dele, o mar canta a sua velha canção. Muitos mal a percebem, mas nunca dois a entendem da mesma forma, porque o mar tem uma palavra diferente para cada um que se coloca cara a cara consigo” pag.7

Olhar para o mar e ouvir a sua canção implica silêncio, obriga a reflexão, e propõe o encontro da pessoa com ela própria, num processo de auto-avaliação. Kielland dota o mar de características humanas (prosopopeia): “ (…) e autêntico bate o coração, o último saudável num mundo doente” e adjectiva o humano de anão que anda num mundo doente. E se o faz, tal se deve à fuga do pensamento quando enfrenta o vazio do infindável mar. Por esta razão o Homem entrega-se à construção, ao trabalho, à frivolidade dos protocolos sociais. Quando Rachel Garman pergunta a Jacob Worse como pode ele viver sem querer quebrar a rotina, a tradição, o pensamento vigente, quando nele há tantas ideias novas, Jacob responde:
“- Tenho um remédio simples, que aprendi com a minha mãe, e que o seu pai também usava – o trabalho. Trabalhar de manhã à noite (…)” pag 157
O Leitmotiv de “Garman & Worse” é o confronto entre inovação e tradição. Ao longo do texto podemos acompanhar a impossibilidade de conjugar estes dois factores dentro do seio familiar e das ligações sociais – através da relação laboral e, intrinsecamente, das diferenças entre classes. O papel da mulher na sociedade e o papel da igreja contextualizam-se, também e de forma clara, neste confronto entre tradição e inovação.
A prosa é objectiva, equilibrada, e elimina o supérfluo. A perspectiva muda consoante o capítulo dando, desta forma, uma pluralidade de pontos de vista. A narrativa é sólida e, apesar dessa mudança de perspectiva, não perde, em momento algum, a sua coerência. O autor tanto se aproxima das personagens (ao ponto de não sabermos a quem é que pertence determinado pensamento, se à personagem ou ao narrador) como delas se distancia.
Os acontecimentos precipitam-se com a chegada de Richard Garman. O irmão do Cônsul Christian Fredrik Garman, dono da firma Garman & Worse, era um náufrago em terra. Tinha vagueado por muitos locais, conhecido muita gente e, no momento em que recebe a carta do irmão para voltar a casa, encontrava-se dominado pelo desespero.
Apesar de todas as possibilidades profissionais que Richard tem, quando chega a casa, ele escolhe a mais inesperada para quem o rodeia: “Sabes, Christian Fredrik, não consigo imaginar um cargo mais adequado a um náufrago como eu do que o de faroleiro aqui” pag. 11
 O náufrago em terra muda-se mais a filha para o farol. É nesta fronteira entre o mar e a terra, de cara voltada para o mar e costas voltadas para a terra, que Richard projecta o olhar sobre o infindável e deixa o mar entrar em si. Renovado, Richard está em casa.
É através de Gabriel Garman, filho mais novo do Cônsul, que assistimos a uma primeira batalha entre a tradição e a inovação. A renovação da indústria implica a actualização da forma de produção da empresa. Morten Garman, filho mais velho do cônsul, defende o fabrico de navios a vapor enquanto o Cônsul continua a defender a manutenção da construção de caravelas. A tradição abranda a inovação:” (…) Christian Fredrik – seguia de perto os seus passos [do pai], sempre de acordo com a máxima: o que faria o pai nestas circunstâncias?” pag. 26
A insatisfação de alguns trabalhadores, com evidente diferença de nível de vida, faz-se sentir. Por várias vezes são referidos o cheiro nauseabundo a peixe e a sujidade nas ruas, enquanto a mansão da família Garman, em Sandsgaard, tem todas as comodidades. A conformidade do trabalhador perante o patrão começa a diluir-se e, desta forma, são introduzidos os problemas dos estratos sociais e relações laborais:
- Não chega – gritava- matarmo-nos a trabalhar para estes tipos? Têm mesmo de ficar com parte de cada migalha que comemos e de cada gota que bebemos? Olhem só para as casas deles! Quem lhes deu tudo aquilo? Nós, avô!” pag. 49”
Novas palavras como “proletariado” são ditas sem serem apreendidas, por serem recentes, pelos mais antigos.
A inovação tecnológica é simultânea à alteração do comportamento da população.
II
A Igreja mantém o seu poder regulador sobre a Razão, a Moralidade e a Tradição. E é por esta tríade que o homem orienta a sua conduta e a mulher se sujeita a um papel secundário. Fru Garman, mãe do Cônsul, apesar de matriarca da família, não governa realmente a sua casa. Apesar da tradição se basear na antiguidade, a presença feminina não está sujeita a essa regra. É, constantemente, relegada para um plano secundário. Esta é a regra vigente e conservada, também pela igreja. Quando o director da escola, estudante de teologia com pretensões a Pastor, quer fazer o seu primeiro discurso na igreja é fortemente influenciado por Rachel, filha do Cônsul. Rachel não partilha as ideias vigentes. Rachel (e Jacob) é uma “livre pensadora”
Na igreja, após o discurso escandaloso e de matriz anticanónica de Johnsen, director da escola, sobre a falsidade do coração humano e a escolha do caminho da verdade em detrimento de rituais, o sentimento entre as mulheres tornou-se indefinido. Por hábito, procuraram nos homens a sua própria opinião: “Entre as mulheres, o sentimento parecia bastante indeterminado, e muitos olhares inquiridores eram lançados em direcção aos homens, na esperança de adivinhar qual seria a sua opinião, fosse de um pai, um marido, um irmão, ou de facto qualquer outra pessoa do sexo oposto com quem cada mulher tinha o hábito de formar a sua própria opinião” Pag.89
A pessoa mais procurada foi, no entanto, o deão.
Este personagem é o mais sedutor de todas as personagens do livro. Quando todos esperavam agressividade perante tal discurso, o deão respondeu com uma voz afectuosa, um sorriso nos lábios e uma retórica que seduziu o director a mudar de opinião.
Sempre que surge um problema, uma quebra na rotina estabelecida, a sedução do deão recompõe a ordem. Não o faz através da imposição ostensiva de regras de conduta, mas pela sedução e envolvência da sua capacidade oratória.
A tradição mantém-se através da repetição cega dos costumes, da formação da Moral, por parte da igreja e personificada no personagem do deão e, também, através da educação escolar que, aliás, se encontra muito ligada à igreja: “O professor propagava o seu tema favorito: que era impossível que os jovens adquirissem um conhecimento apropriado sem levarem pancada; e toda a formação superior desapareceria se não se impusesse um limite ao humanismo moderno, a que ele preferia chamar doença” pag.39
Jacob Worse e Rachel Garman representam a ruptura com a Razão e Tradição vigentes. Jacob, em conversa com Rachel, dá mais um exemplo da dificuldade em contrariar o que há muito está estabelecido. No seu caso, o pensamento inovador foi derrotado pelo conservadorismo. Ele havia fundado uma associação para a qual fora nomeado presidente. Devido aos rumores de falta de legitimidade por não ter havido eleições, ele próprio as propôs. Perdeu, surpreendentemente, para outra pessoa que nunca havia ido a nenhuma reunião. Mais tarde, descobriu que o deão havia influenciado a opinião das pessoas. Desta forma, o pensamento antigo derrotou o moderno.
Ao contrário da inadaptada Rachel, Madeleine, filha de Richard Garman absorveu as regras de etiqueta e as regras da sociedade, após alguns anos na cidade. Tudo isto apesar de ter morado 10 anos em Bratvold, no farol, e convivido com os pescadores. A relação de Madeleine com a localidade onde crescera mudou radicalmente “(…) nunca queria ir para a sua casa em Bratvold juntamente com o seu pai, mesmo que só por alguns dias. Parecia temer olhar outra vez para o céu” Pag.94
Tornara-se uma mulher mais activa, mais citadina e muito menos introspectiva, menos perto do mar.
Enquanto Madeleine fazia o percurso de adaptação à Razão vigente, Rachel Garman não cessava de se indignar com o papel da mulher na sociedade: “Tudo a parecia irritar [Rachel]. Não aguentava ouvir estes homens discuti-la e á sua posição como se fosse algum animal estranho, e sem nunca terem a preocupação de lhe perguntar a sua opinião” pag.67



III
Desde o início até quase ao fim do livro existe um navio em fase de construção. Se há uma materialização da tradição, em “Garman & Worse”, então ela existe através dessa embarcação. Apesar de muitas forças estarem envolvidas na construção, só o Cônsul sabe o nome que vai dar ao navio.
Era fulcral para o Cônsul que a embarcação estivesse pronta a zarpar em determinado dia. Mas algo nefasto acontece e que vai ter repercussões definitivas nos intervenientes. Um incêndio deflagra-se nas imediações. Apesar do filho do Cônsul propor novas medidas de combate ao fogo, o Cônsul recusa e continua a usar as velhas bombas de água, que não surtem qualquer efeito. “O jovem Cônsul adquiriu uma postura firme; parecia ouvir um eco de todas as desavenças entre eles. Era a velha história, o novo contra o velho, e ele respondeu sucinta e friamente: - Ainda sou o chefe da família. Volta e faz o teu dever como eu mandei” pag.123
A tradição da família afunda-se defronte de todos. No entanto, é o filho mais novo, juntamente com a força dos trabalhadores da empresa, que consegue salvar o que o Cônsul já dava como perdido. Soltando o barco para água, consegue extinguir o fogo que consumia a embarcação. Mais tarde, temos a oportunidade de saber qual seria o seu nome. O navio seria baptizado com o nome do pai do Cônsul, mas em vez disso, e de forma metafórica, é o filho mais novo a baptizar o navio: Fénix. E assim se transmite, para o presente e futuro, um passado renovado.
A problemática da clivagem entre estratos sociais é abordada, já nos capítulos finais, com um humor cínico e negro. Evitando desvendar mais do que o necessário, refiro-me à desigualdade entre pobres e ricos mesmo depois de mortos. Enquanto um cortejo fúnebre reúne grande parte da população, é acompanhado por uma orquestra e monopoliza as coroas de flores existentes, outro cortejo, bem mais simples, com uma única coroa de flores que sobrara em todas os estabelecimentos, espera, com o caixão pousado, defronte de uma cervejaria. Só pode entrar um cortejo de cada vez e este, mais pequeno e menos composto, tem de aguardar. Os sete palmos de terra que o padre apregoa serem uma medida de igualdade entre ricos e pobres não é, afinal, assim tão fiável. Os pobres têm o seu espaço para serem sepultados. O coveiro desvia velhas ossadas, que são desenterradas conforme se abre outra sepultura, e guarda-as num pequeno porão para dar lugar a outro pobre numa nova cova. O coveiro, pouco sensibilizado pela pobreza, afirma: “Os pobres dão tanto trabalho na morte quanto em vida. Nunca morrerão como pessoas respeitáveis, um por um, de vez em quando; mas morrem todos ao mesmo tempo, sabe, e então vêm para aqui e querem ser enterrados.” pag.152
IV
As ideias novas casam com a necessidade de mudança.
O diálogo entre Rachel Garman e Jacob Worse mostra, de certa forma, o caminho percorrido pelas personagens e, devido à universalidade de “Garman &Worse”, o próprio caminho dos leitores: Jacob afirma “Novas descobertas e experiências surgem a toda a hora, e dúvidas e questões escondem-se por baixo e minam toda a construção. Verdades aceites e bem estabelecidas são arrasadas, e aqueles que são incapazes de se adaptar aos novos tempos reúnem-se confusamente em volta da estrutura apodrecida, amaldiçoando a juventude e prevendo a destruição da sociedade” pag 157
Esta problemática mantém-se actual apesar de agora a velocidade dos acontecimentos ser muito maior. O Homem, actualmente, só tem capacidade de reacção perante a extraordinária mutação das tecnologias. A facilidade de acesso a muita informação, numa rapidez invulgar, tem efeitos sobre os Valores, sobre a Tradição e sobre a Moral A questão debatida ao longo de “Garman & Worse” encontra-se, ainda hoje, na actualidade. Apesar de em alguns aspectos poder ser considerado um livro datado, a universalidade em si existente permite que um século depois ainda seja uma obra de grande qualidade.
“ Todos se debatem cegamente em conjunto, enquanto a sociedade se entrelaça com um tecido de hostilidade, desconfiança, falsidade e hipocrisia” pag. 157
Madeleine volta a Bratvold e depara-se com o mar e, por consequência, consigo mesma…
“ Parecia que uma mancha de impureza repousara em si durante todo o tempo que estivera afastada de Bratvold; e agora que se encontrava novamente cara a cara com o oceano, parecia quase envergonhada por regressar” Pag.171
…enquanto Jacob Worse apela à emancipação da mulher.
“Não é muito fácil dizer antecipadamente qual deve ser o seu tema –disse ele- ; mas está claro que há infindáveis coisas que o mundo pode apenas descobrir com uma mulher, e que parece estar à espera de ouvir. Só lhe resta ter vontade” Pag.114
É difícil compreender como foi possível ter de esperar tanto tempo por uma tradução de “Garman & Worse” para português. Felizmente, essa espera terminou.

Mário Rufino


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1 Comentários

Cláudia S. Tomazi disse…
Olá Mário, parace bem interessante, o livro. mas confesso que o fio condutor desta obra, por vos aqui caracterizada, retrocede e alterna na busca de complementar o sentido... Seria mesmo, esta a característica da obra, ou um exercício do leitor?