“Por Este Mundo Acima”
“A amizade é um amor transfigurador e potente. É uma arma.”
Pag. 127
Patrícia
Reis oferece-nos um livro optimista, onde a amizade é a verdadeira reconstrução
num mundo destruído. No seu 6º romance, transporta-nos para um mundo pós
apocalipse e arruinado em estruturas e emoções. A sobrevivência é imperiosa e o
Homem regride à sua condição de animal.
Nas
primeiras páginas, a autora demonstra que existem relações produtivas e
explícitas (intertexto) com outros textos. Neste caso, existem relações
identificadas com textos de Fausto, «Por
este rio acima», e com Brecht, «Do
pobre B.B.». Por ser um livro que aborda directamente o papel da literatura
na sociedade, existem outras aproximações a outros autores com a subtileza
exigida, ou não, pela própria autora. “Por
este mundo acima” é um livro que dialoga com a literatura; não é fechado em
si mesmo, mas antes abre possibilidades de leituras a outros livros. De outra
forma, pode-se afirmar que existe abertura do texto ao pensamento sobre a
historicidade e sociedade onde o Homem se insere e influencia.
A
narração é sobretudo psicológica e não pude deixar de me lembrar de “Fome” de Knut Hamsun e de “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago
(Saramago começa, no entanto, com uma impossibilidade, ao contrário de Patrícia
Reis). Assim sendo, a narração ocorre na 1ª pessoa do singular. Esta
perspectiva confere uma maior proximidade do leitor ao pensamento do personagem
Eduardo (principal narrador). A sua visão sobre as outras personagens será a
nossa, também, uma vez que não existe uma entidade omnisciente e concretizada
numa 3ª pessoa. No entanto, através da estratégia narrativa de uso de
cartas/apontamentos (aqui temos o diferimento da mensagem que abordaremos mais
à frente) a autora dá-nos a oportunidade de estarmos mais próximos das emoções
e ideias de uma entidade essencial no livro: Sofia. É sobre ela, não
exclusivamente mas principalmente, que incide o espírito de tolerância das
outras personagens, individualmente e como grupo. É por este meio que
descobrimos os acontecimentos da sua vida que influenciaram a sua formação
emocional. A aceitação das suas características e o amor que todos sentem por
ela é a chave de leitura deste texto. É este tipo de amor que pode levar o
Homem à sua salvação. A relação entre eles é de longa data: “ Há mais de trinta e tal anos que falamos
das listas do Eduardo” pag.79. E a interdependência emocional é partilhada
por todos.
Mais do
que um texto musical, construído com frases mais longas interrompidas por
frases mais curtas originando mudanças de ritmos, diria que o texto é,
sobretudo, fílmico devido à construção de imagens fortes e sugestivas.
A
nível temático, o texto relaciona-se com os factores externos (contexto) a si
próprio, fundamentando a sua produção, recepção e interpretação em
acontecimentos possíveis. Nunca ficamos a saber o que realmente aconteceu. Nem
é importante. O que o texto nos transmite é a ruptura com um passado (contexto
situacional), um apocalipse que reduz o ser humano à sua essência, ao seu
instinto de sobrevivência (universo simbólico).
“O meu corpo estremece. Não o controlo.
Vejo as mãos suadas e tento continuar. Sou um animal. Regresso a isso” pag.
126
“É fundamental deixar de pensar”
pag.124
Posteriormente,
é sobre este movimento niilista que se constrói a salvação, a aceitação e,
essencialmente, a elevação do melhor do Homem: A amizade como amor, como
dedicação ao próximo em detrimento das próprias necessidades (visão do mundo). Segundo
Levinas, o altruísmo, a decisão de colocar o Outro em primeiro lugar pode
atenuar o terror da existência. Essa é a nossa transcendência. É esse terror
que existe ao longo do livro de Patrícia Reis e é o amor, composto por altruísmo
e inclinação para o Outro, que o pode atenuar, sem o derrotar.
II
O
homem constrói, permanentemente, narrativas. o Homem constrói um texto
narrativo quando fala do seu percurso de vida, da história clínica, ou quando
conta algo a alguém. Assim sendo, não pode viver sem a produção e recepção
desses mesmos textos. Eduardo tem essa percepção e insiste, permanentemente, em
recordar/narrar os acontecimentos passados e, principalmente, dar a conhecer a
sua memória, os acontecimentos que o marcaram, a Pedro.
“ Ele fazia lista de livros que era
importante circular. Livros luminosos que, não sendo lamechas, nos revelavam a
vasta matéria dos sentimentos que definem a condição humana”
pag.164
Segundo
Aguiar e Silva (1990), « a narratividade
encontra-se intimamente correlacionada com o conhecimento que o homem possui e
elabora sobre a realidade- o Génesis pode-se considerar, sob esta perspectiva,
como a narrativa paradigmática e primordial -, devendo ser sublinhado que
lexemas como “narrar”, “narrativa” e “narrador” derivam do vocábulo narro,
verbo que significa “ dar a conhecer”, “tornar conhecido”, o quel provém do
adjectivo gnarus, que significa “sabedor”, “que conhece”, por sua vez
relacionado com o verbo gnosco(pp. 201
A
narração é indissociável do tempo. Uma característica interessante de “Por este mundo acima” é o facto de a
narração ocorrer no futuro, no espaço de um mundo possível, viajando entre o
passado (tempo presente do leitor) e o presente do narrador (tempo futuro do
leitor). Entre os vários marcadores temporais que nos fornecem essa informação,
além do sistema verbal, há um que pretendo sublinhar: A referência ao próprio
livro de Patrícia Reis remete-nos à actualidade e indica que ele narra no
futuro. E este aspecto é intrigante porque um texto escrito é uma forma de
diferimento da mensagem. Através da escrita pode-se perpetuar, ou pelo menos assegurar
a permanência no tempo, da mensagem. O personagem adjectiva o livro de “datado”, isto num diálogo sobre o Facebook , o MSN e o Youtube. Ou seja,
podemos utilizar esta referência como “ a leitura do texto”, necessariamente
mais próxima desse futuro possível; ou como a “edição do texto”, mais afastado
desse futuro apocalíptico.
A
narração situada no futuro levanta uma outra característica importante e
coerente com a temática de “Por este
mundo acima”: A presença do verbo “Ser” no futuro é uma vitória, ainda que
escassa e ténue, sobre a morte. E o texto é isso mesmo: uma narração no futuro
que encontra os seus alicerces no passado para, com esperança e renovação,
continuar a adiar a morte definitiva dos valores culturais do Homem e, por fim,
dele próprio.
A
morte da memória ou a ignorância invalida a continuação da história. Analise-se
a conjugação verbal da seguinte frase: “O
homem da gabardina bege terá uma história e eu gostaria que alguém me contasse
tudo em pormenor” pág. 93
A
probabilidade desce do futuro imperfeito até ao imperfeito do conjuntivo…
porque não há ninguém para contar.
III
“Voltámos ao princípio e até temos um
livro para nos guiar” pág. 157
A
reorganização social começa quando Eduardo encontra uma criança: Pedro. E devido
ao poder transformador deste personagem, a autora divide o tempo em antes e
depois do apocalipse:
“O caos aconteceu quando ele andava pelos
quatro anos de idade, quase cinco. Fizera os 8 há dois meses”.
Pag.114
Pedro
é um recomeço, é um exemplo de generosidade num mundo destruído pela falta de
comida, de água, de higiene e falido de cooperação e altruísmo: “Ele parte outra bolacha em quatro,
desajeitado, e oferece-me dois pedaços” Pag. 119
Pedro
incentiva Eduardo a quebrar o seu medo de convivência, de partilha de um espaço
e diálogo com outros sobreviventes. E assim conhecem Miguel, jornalista, que
vagueia pela Península Ibérica transportando notícias. Este personagem,
aparentemente secundário, tem um papel importantíssimo na história: Ele é o
responsável pela interacção entre os povos, pois é ele que transporta as
notícias sobre os outros, os sobreviventes. Miguel é o mensageiro (apóstolo?).
“ A sua vida resume-se a ter estado
sozinho, a recolher histórias para depois partilhar. Não criou raízes, não se
deixou ficar num qualquer outro lugar. Partiu à procura de algo de melhor que
possa, um dia, trazer de volta uma certa ideia de humanidade” pág.
161,162
A
reorganização vai-se consolidando. Os anos passaram e com eles veio a
capacidade da sociedade se organizar. São mencionados progressos em países
distantes.
Pedro
descobre as caixas com as recordações escritas de Eduardo. A memória de Eduardo
sobrevive, através de várias caixas com textos que foi armazenando desde a
infância, na interpretação e na memória de uma criança. A memória individual é transmitida,
desta forma, para as mãos e memória individual de Pedro. Mas não chega. Era
imperativo a sociedade, que tem a força de uma personagem, manter a sua memória
colectiva de forma a não repetir os erros do passado:
“ Decidiram passar a biblioteca da avó de
Eduardo para um centro cultural, para estar sempre disponível, para ser a
memória de todos” pag.180.
Pedro
começa a recriar o alfabeto, primeiro passo para a impressão em papel, e, além
do livro de Sebastião, outros livros foram escritos e difundidos pela nova
sociedade que emergia dos escombros. Miguel, o jornalista, fala com Eduardo
sobre a escrita de um novo manuscrito, uma história sobre o presente, a
nobreza, onde a linha do Bem e do Mal se distingue (O Novo Livro/Testamento). A
revisão do livro foi a última tarefa de Eduardo.
- O livro como salvação
Na cultura judaico-cristã, como afirma Victor
Aguiar e Silva (1990), texto significa obra escrita, o livro, obras religiosas
detentoras de autoridade. Na idade média, texto significa a obra do autor, ou
seja, obra da pessoa que exerce autoridade. Até ao século XXI, o termo texto
não apresenta uma mudança de significado, embora tenha ganhado alguma
ambiguidade semântica.
A
autoridade emana do livro de Sebastião. É uma obra-prima, segundo Eduardo, e,
mais do que isso, é o livro que transporta o passado recente para o futuro. É a
continuação temporal, a passagem cultural do que aconteceu antes do acidente. Pedro,
já mais velho, é muito céptico em relação a esta hipótese: “Não é um livro orientador, é uma ficção e isso é claro, é uma parábola
do tempo em que foi escrito e um achado futurista adequado às circunstâncias»
pág. 157
E numa
frase simples e ingénua interroga o leitor e o próprio texto: “Voltar ao princípio? Será possível? O que é
o princípio?” pag.157
Estamos
perante a dúvida a que Steiner, em “Gramáticas
da criação”, responde: “Já não temos
começos”. Mais: Nas palavras de Pedro, há um reflexo das dúvidas do Homem
em relação aos Evangelhos, ao livro orientador e fundador da moral cristã. É no
livro de Sebastião, hipotético pilar da refundação social, que incide o debate
entre Pedro e Eduardo.
Este
livro representa um caminho, individual e/ou colectivo, para o sentimento mais
nobre do Ser Humano: Bondade.
“É urgente ensinar a partilhar, Pedro.
Para não voltarmos ao mesmo. A Sofia, o Jaime e o Lourenço sabiam o que era
bondade. Não por serem bondosos, repara, mas por o saberem distinguir e
praticar no dia-a-dia sem se fazerem notar”
Pág.
170
Bibliografia:
REIS,
Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Lopes (2000) “Dicionário de Narratologia”,
Coimbra, Almedina
AGUIAR
E SILVA, Vítor Manuel de (1990) “Teoria e Metodologias Literárias”, Lisboa,
Universidade Aberta.
Mário Rufino
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