“Um
lugar chamado Oreja de Perro”
IvánThays
Eucleia
Editora
“Cheguei à conclusão de que o pior que nos
podia acontecer era acostumarmo-nos à morte, à impunidade, ao horror, ao mal”
pag.19
I
Iván
Thays constrói um cenário de silêncio, de melancolia e afastamento emocional a
tudo o que rodeia o personagem principal. O jornalista em plena decadência
profissional e destruído emocionalmente por uma perda irremediável é enviado
para uma aldeia pobre, assistida por caminhos quase intransitáveis, que se
prepara para assistir a um acontecimento que o jornalista adjectiva como
“ridículo intento populista de um presidente que já se vai do governo e cujo
partido não tem nenhuma oportunidade nas eleições” pag.15
O
presidente é Alejandro Toledo Manrique.
Se
acompanhamos o caminho de perda, de deterioração emocional do protagonista,
fazemo-lo dentro do contexto sociopolítico do Perú. O Presidente Toledo
prepara-se para ser substituído na presidência por Alan García Perez, outrora
presidente no período de 1985-1990 e substituído, então, pelo controverso
Fujimori.
Dez
anos depois, em 2000, Fujimori viria a exilar-se no Japão, após inúmeros
escândalos, e renunciar à presidência. Fujimori viria a ser acusado e condenado
por violação dos direitos humanos.
É em
2001, após um período de transição, que Alejandro Toledo Manrique é nomeado
presidente com uma elevada taxa de popularidade. No momento em que o jornalista
se desloca a “Oreja de Perro”, Toledo cumpre o seu último ano de mandato
(2001-2006), tem um índice de popularidade muito baixo, e prepara-se para ser
substituído.
O
jornalista viaja para “Oreja de Perro”. Enquanto a recém-constituída “Comissão
da Verdade”, liderada por um professor universitário e filósofo (ou seja,
liderada pela teoria), procura o que anuncia – a verdade - o objectivo do
jornalista é diferente:
“a mim, o tema que atraía era o do mal. Quer
dizer: é isto o ser humano?» pag. 17
A
viagem não implica, somente, deslocação física, mas também alteração anímica.
Durante o seu percurso, sabemos do desmoronamento do seu casamento através de
uma carta deixada pela esposa, da degradação da situação profissional e da dor
provocada pela perda do seu filho.
“Começam os primeiros sintomas do mal das
montanhas. Dor de cabeça, náuseas, esgotamento, olhos inchados, a indomável
carta resplandecente, lábios secos, palpitações nas têmporas. O estômago que se
desloca lentamente em círculos. Insónia, não. Insónia, não posso permitir.”
Pag.33
Tudo
menos a consciência. A consciência implica pensamento, interacção, memória,
dor. E a memória é um elemento fulcral no livro de Iván Thays.
“Oreja
de Perro” é um tempo suspenso, um purgatório, na transformação do principal
personagem do livro. O local sublinha a solidão e, como o próprio jornalista
afirma, o barulho das moscas aumenta a sensação de clausura. “Oreja de Perro” é
um pequeno lugar, de que, provavelmente, ninguém ouvira falar até a “Comissão da
Verdade” o mencionar no seu parecer como palco de atrocidades. Nesse parecer é
mencionado a existência de valas comuns e clandestinas. Os ronderos (patrulha
camponesa; força de segurança baseada na comunidade) teriam sido os únicos a
derrotar o terrorismo sem qualquer ajuda da polícia. Aliás, a localidade não
havia sido visitada por qualquer força da autoridade.
“Nunca uma autoridade chegou até cá. Nem
sequer um tenente alcaide. Agora o próprio presidente Toledo escolheu a zona
para iniciar um programa de distribuição de dinheiro para camponeses” pag.15
Scamarone,
o fotógrafo, é o seu companheiro de viagem. Segundo o jornalista, não há
qualidade humana que recomende o seu colega. Cínico e detentor de uma retórica
de sucesso, Scamarone é descrito como um indivíduo muito baixo, menos de 1,50m,
capaz de convencer toda a gente que não era anão. A verborreia com que
presenteava os seus interlocutores (ou ouvintes?), sobre viagens e com citações
sem sentido, tinha o poder hipnótico sobre quem ouvia. A estatura do fotógrafo
é uma metáfora sobre a estatura moral. No entanto, o cinismo de Scamarone terá
um papel relevante na saída do limbo em que o jornalista caiu. Ele irá
influenciá-lo a recusar a fuga, a dormência emocional, através de uma relação
amorosa que, à partida e tal e qual acontecera com Mónica (esposa), se encontra
condenada.
II
“Fui
eu que permaneci enclausurado na sua morte” pag. 104
No dia em que parte para “Oreja de Perro”, o
jornalista lê a notícia do homem que havia ficado amnésico após um trágico
acidente que vitimara a mulher e o filho. Ele tivera oportunidade de o
entrevistar e, em consequência, perceber o vazio da sua memória. Durante a sua
estadia na aldeia, ele nunca esquece a situação desse homem. Por isso, algum
tempo mais tarde, tenta convencer o Editor do seu jornal a deixá-lo
entrevistá-lo, novamente. Tinha passado um mês e, devido à velocidade da
informação, esse acidente pertencia a um passado distante. O autor
apresenta-nos outro tipo de esquecimento. Já não é aquele que a quantidade de
tempo “enterra”, mas um outro tipo de esquecimento: a velocidade de informação
nova submerge a mais antiga Na segunda entrevista, o homem afirma não ocupar a
sua memória com factos do passado, mas com informação recente, mais ou menos
relevante, como citações de Shakespeare ou língua chinesa. Ele contou-lhe o que
a professora de chinês lhe havia dito quando se lamentou pela falta de memória:
(…) Não tens que lamentar-te pela amnésia. A
memória é uma espia. Tu conseguiste livrar-te dela, conseguiste extraviar-te da
tua espia” pag.90
Sem
memória tudo desaparece: o filho, a história, as emoções, a aprendizagem. E
tudo se repete, renovadamente. O jornalista e o país precisam de recordar, de
não esquecer a sua história de forma a construir um futuro com menos vícios do
passado. A memória, no livro de Thays, é indissociável da culpa e da forma como
se pode lidar com ela.
O
jornalista parte para “Oreja de Perro” carregando o peso da sua memória. Tal
como o país, ele está preso ao passado e tem muitas feridas por sarar.
A
violência no Peru, como em todos os locais, alimenta-se do medo e envolve as
suas raízes na ignorância:
“A tua mãe sabe ler?, perguntou-me um dia o
polícia.
Sim, sabe, respondi. É professora
Isso é fodido, disse ele. Saber ler nestes
sítios é fodido” pag.185
Muitas
pessoas foram raptadas pelos militares para serem interrogadas, torturadas e
mortas. Mas ele não se deslocou até ali por causa desse sofrimento, mas para
escrever sobre o acontecimento político. E o paralelismo entre o país e o
personagem não cessa com a incapacidade de esquecer o passado e construir um
futuro: A escrita da carta de resposta à esposa e a chegada do presidente
Toledo são dois acontecimentos por realizar. Tudo é constantemente adiado.
Ambas as situações, ao acontecerem, implicam a tangibilidade do presente, a
concretização da realidade que o personagem individual (jornalista) e a
personagem colectiva (povo) sabem ser inevitável.
A
imparcialidade/distância é colocada em causa quando ele se envolve com Jazmín,
natural de “Oreja de Perro”, grávida devido à (hipotética) violação por um
sargento. A miscigenação da população com a atrocidade militar é, assim,
concretizada numa geração futura. Ele sabe que a sua envolvência com Jazmin não
pode ser duradoura, e prenuncia: “ Seria mais fiel dizer que Jazmín é, e isso
nota-se a léguas, uma dessas raparigas a quem vai suceder alguma coisa na vida.
Ou melhor, como tinha dito o meu pai, uma rapariga de que há que fugir de
imediato porque depressa se meterá numa alhada” pag.39
Jazmín
assumia ser a mãe e o pai daquela criança. Nada queria da figura militar que
havia raptado e torturado e morto a sua mãe (ascendência).
III
“O antónimo ideal da memória deve ser a
imaginação, fantasiar, fazer ficção. Não a amnésia”
O
caminho para a aceitação, para a Verdade, é um caminho difícil e talvez utópico
tanto para o personagem individual (jornalista) como para o personagem
colectivo (o país)
Iván
Thays utiliza uma prosa seca de adjectivos, com frases curtas, que nos remete
para a escrita jornalística. A utilização de apontamentos, que ele escreve no
seu caderno, é um recurso narrativo que confirma essa vontade de manter o
registo jornalístico.
Ao
longo do livro, deslocamo-nos para um mundo com características próprias: Uma
grávida que fala com os anjos e antevê o futuro, o acidentado que memoriza
Shakespeare. Mas, sobretudo, somos transportados para um mundo que necessita de
redenção, de um recomeço, de não esquecer a sua história, mas ultrapassar as
dificuldades e despertar com lucidez para um novo dia.
“O mais arrepiante não é a foto. O mais
arrepiante é que, quando a tirei, a ninguém importava um caralho que uns cães
estivessem a comer os miolos dos mortos. Não era foto nem para primeira página,
não era nada, estávamos acostumados a isso. Isso era o que me dava medo”
Pag.222
“Oreja de Perro” pode ser o cão violentamente
pontapeado pelo militar e defendido timidamente pelos populares, ou pode ser,
pelo contrário, o cão magro e de cauda cortada que se passeia defronte do jornalista
parecendo que se ri até o jornalista pensar, animado, que as coisas não têm de
ser tão más. Podem ser melhor.
Mário
Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
Un Lugar Llamado Oreja de Perro by Ivan Thays
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