Os Óculos de Ouro
Giorgio Bassani
Depois
de ter lido “O filho do desconhecido” de Allan Hollinghurst sobre a
homossexualidade, aceitação e memória, eis que a leitura de “Os óculos de ouro”,
de Giorgio Bassani, apresenta, também, alguns destes assuntos, embora abordados
de forma diferente.
A
obra de Bassani, escrita anos antes de “Um filho do desconhecido” de
Hollinghurst, foi construída sobre a perspectiva de uma só voz, de um narrador,
que nos alerta não conseguir ser fiável devido à incapacidade da memória reter
os factos ao longo dos anos.
“Foi em 1919, logo a
seguir à outra guerra. Por razões de idade, só tenho para oferecer uma imagem
vaga e confusa dessa época” Pág. 7
A
visão dos acontecimentos é próxima e parcial, tanto no aspecto afectivo como na
amplitude da capacidade de observação. A cronologia da história sofre diversas
elipses.
Contextualizado
por uma época de convulsão política, onde Mussolini vai ganhando poder e o
fascismo instala-se, Bassani aborda a problemática da aceitação e capacidade de
viver com a diferença.
Dr
Athos Fadigati, sobre quem incide a atenção, é um ottorrinolaringolista sem
vícios aparentes, de aspecto paternal e olhos curiosos por trás dos óculos de
ouro. Chegou a Ferrara (cidade onde Giorgio Bassani cresceu) e depressa ascendeu
socialmente tratando das gargantas de duas gerações, pais e filhos. É aceite
pelos clubes mais importantes e admirado pela população. Curiosamente, a sua
desgraça começa pela boca, pela voz, daqueles a quem tratou.
Como
qualquer boato, a voz inicial não é identificável. Quando ele sai do
comportamento padrão da “alta-sociedade”, começa a ser alvo de comentários
desde a sala de espera do seu consultório até às últimas palavras de qualquer
casal no leito matrimonial. O que viria a marcá-lo, no entanto, não seria a
possível homossexualidade; o que viria a colocá-lo fora dos rituais e companhia
das pessoas que tanto prezava seria a demonstração social de tais hábitos. A
sua vida sexual era vista como vício nefasto que deveria manter-se privado.
Lentamente, a sua vida foi sendo cada vez mais limitada.
“Sim-diziam- agora que
o seu segredo já não era segredo, agora que tudo era claro, tinha-se finalmente
compreendido como lidar com ele. De dia, à luz do sol, dar-lhe grandes
chapeladas; à noite, nem que fosse empurrado ventre com ventre pela multidão da
Via San Romano, mostrar que não o conheciam. Tal como Fredric March no Doutor
Jekyll, o doutor Fadigati tinha duas vidas. Mas quem é que não as tem?” Pag.20
O
eu-narrativo ajuda, neste caso, à criação e manutenção da distância entre a
narrativa e as características psicológicas do médico. Pouco se sabe dele, mas
muito se especula. Só muito tarde temos a sua voz e nunca temos a sua opinião
directa sobre o que se passa. Tudo isto apesar de haver alguma aceitação por
parte da personagem que nos conta a história. É a sua inércia e dependência que
o impossibilitará de reagir à mesquinhez social.
Assim chegamos à 2ª geração, aos filhos dos
pais que começaram a frequentar o seu consultório, sem termos uma ideia sólida
das características da personagem que motiva a narração. A nossa imagem do
médico baseia-se em boatos, factos incompletos, conclusões falíveis, pois o que
nos é dado a conhecer é, aproximadamente, o que a 2ª geração conhecia na época
dos seus pais. Só quando ele começa a acompanhá-los, em viagem para Bolonha
devido aos estudos, é que começamos a conhecê-lo melhor. E são estas constantes
viagens que vão originar a queda definitiva de Dr. Athos Fadigati.
Numa
dessas deslocações, Deliliers, elemento fulcral na queda do médico,
pergunta-lhe: “ «Deixe lá o estrume,
doutor», escarneceu, « e fale-nos antes daqueles dois rapazes da horta de que
gostava tanto. O que faziam, todos juntos?» Fadigati estremeceu" Pag.”41
O
respeito que lhe era tido devido à sua posição social, ao facto de ter tratado
dos pais e deles também, vai decaindo até a um nível difícil de suportar.
“Era esquisito de ver e
até penoso: quanto mais Nino e Deliliers multiplicavam as grosserias em relação
a ele, mas Fadigati se agitava na vã tentativa de ganhar simpatias” Pág. 44
Após
mais uma elipse temporal na narrativa, deparamo-nos com o que denominam de
«amizade escandalosa» entre ele e Deliliers.
A
deterioração emocional é gradual até ao desfecho. Só o narrador mantinha algum
respeito por ele.
“ Eu ao menos não o
tinha ludibriado. Em vez de me associar a aquém o traía e explorava, havia sido
capaz de resistir, de conservar por ele um mínimo de respeito” Pág. 78
O
médico é dominado por uma atitude passiva e reactiva. A sua inadaptação ao tipo
de comportamento social onde impera a censura e o boato causa constrangimento
ao leitor.
A
dignidade é posta em causa tanto no aspecto emocional como no aspecto físico.
Mas a intolerância não se resume à sexualidade. O fascismo impõe-se e fala-se na
promulgação das leis raciais. A preocupação entre a família do narrador é cada
vez maior porque, apesar de serem defensores da ideologia vigente (fascismo),
vêem que podem ser muito prejudicados por serem judeus. E a antiga crispação com
os cristãos renasce:
“(…) eu sentia nascer o
antigo e atávico ódio do judeu em relação a tudo o que fosse cristão, ortodoxo,
em suma: goi” pag. 100
Georgio
Bassani arquitectou um romance onde a intolerância é o tema-chave. Numa época
de convulsões ideológicas (socialismo vs fascismo), religiosas (judaísmo vs
cristianismo), sexuais (heterossexualidade vs homossexualidade) a harmonização
entre ideias, crenças e escolhas sexuais revela-se incompatível.
Ao
longo das 126 páginas que compõem este livro, o leitor é confrontado com a
incapacidade de uma comunidade de lidar com as diferenças entre os seus
elementos. O senso comum, que não passa de uma média aritmética da vontade,
esmaga o individual. Dr. Athos Fadigati é uma vítima da sociedade e da sua
incapacidade de reagir perante tais agressões.
Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
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