"Last man standing"
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"Last man
standing"
Quando tudo se move, não há
nada mais perigoso do que a imobilidade.
Todos os dias saio do metro
e corro para o comboio, atravesso o túnel de acesso à estação, valido o bilhete
e entro numa carruagem. Conheço algumas pessoas que comigo viajam à mesma hora.
Ouço as suas histórias, sei onde trabalham, lembro-me do que dizem, mas só de
uma ou duas é que consegui memorizar o nome.
Tenho inveja dos passageiros
que adormecem no comboio. Não consigo cair naquela inconsciência. As bocas abertas,
a cabeça encostada ao vidro, o livro no colo, aberto, mas inacessível…
Temos de correr atrás do
tempo. Não podemos parar. A máxima aplica-se: “Tempo é dinheiro”
Aquele dia não era
diferente. A porta do metro abriu, comecei a correr devagar, olhei para o
relógio pendurado no tecto, eu estava atrasado, corri mais depressa,
ultrapassei algumas pessoas, comecei a transpirar, e, de repente, uma anomalia.
As pessoas desviavam-se, cambaleavam, houve uma ou duas que caíram, mas
depressa o medo do ridículo as levantou
«Mexe-te idiota!!»
e elas continuaram a correr.
Um homem mantinha-se imóvel,
de pé, a observar o fluxo de gente que vinha no seu sentido.
A inacção interrogava a
velocidade das pessoas que passavam. Era uma questão mecânica. Aquela peça
havia deixado de funcionar como previsto. As pessoas desviaram-se e rejeitaram
a anomalia. Não podia ser de outra forma. Tudo nele era falibilidade. E eu,
como todos, evitei-o e continuei no meu caminho. A máquina tem de funcionar. As
peças que não funcionam como indicado são substituídas por outras.
Os seus dedos roçaram na
minha roupa. Tive quase a certeza de que ele esticara o braço, pois tentei
passar o mais distante dele.
Voltei para trás, olhei para
ele e parei.
Uma rapariga chocou contra
mim, interrompendo o seu trajecto predefinido. Surpreendida, olhou para os meus
olhos e seguiu a linha que os unia àquele homem. Ele, ela e eu não nos
movimentámos mais e, desta forma, contrariámos tudo o que de nós era esperado.
Uma peça avariava outra peça
que avariava outra peça…
Os braços puxavam-no para
baixo, de mãos abertas. A gravata amarrava-lhe o pescoço e o fato colava-se à
pele que transpirava.
Eu não conseguia prever o
comportamento, as reacções. Há padrões que são necessários para sabermos o que
fazer. Fiquei parado, só isso, e percebi que mais e mais pessoas se juntavam a
mim. Os acessos à estação ficaram bloqueados, ninguém passava e cada vez menos
pessoas se moviam. O som foi diminuindo e diminuindo até quase desaparecer. O
túnel ficou cheio de gente, cheio de silêncio somente rasgado pela chegada e
partida do metro. Mas até isso deixou de acontecer. As buzinas dos carros
calaram-se, os motores desligaram-se e o trânsito parou. Muitas pessoas ficaram
nos passeios e na estrada a olhar umas para as outras. Pararam. Saíram dos
cafés e espreitaram pelas janelas para ver. O trânsito foi acumulando e
formaram-se enormes caudas metálicas. Os carros ficaram vazios e cada pessoa
olhou para a pessoa mais próxima que olhou para outra e para outra até chegar a
ele. O som foi caindo devagar até deixar de existir. Vilas e cidades e depois
regiões e depois países e continentes suspenderam a acção.
O olhar convergia para
aquele homem. Um pequeno perímetro de espaço vazio protegia-o do contacto
físico. Somente ele se distinguia na multidão. Então reparei que os seus olhos
mexiam-se. O seu olhar observava tudo o que estava à sua frente. Nós éramos
observados por aquele indivíduo.
Todos nos olhávamos e sem
saber como, a solidão encheu-nos as mãos e o peito. Deixámos de ter pressa e o
tempo pareceu ausentar-se. Ficámos sem mais nada para fazer senão pensar… O
pensamento libertou-se e começou a criar ligações entre informação e
recordações que eu julgava não ter. Havia demasiada luz, queria levar as mãos
aos olhos, parar aquela angústia, preencher aquele vazio que se instalou no meu
peito. Mas não conseguia. Ouvia a minha respiração, ouvia a respiração da
rapariga que estava ao meu lado e reparei na sua agonia, nos olhos cheios de
lágrimas e nos lábios comprimidos. Tinha de me mexer. Não aguentava mais
aquilo. Tornou-se insuportável, ninguém aguentou.
Um bebé chorou, uma mulher
debruçou-se para o corpo do bebé, ouviu-se a voz maternal, outra pessoa olhou,
e outra e outra e os corpos começaram a movimentar-se e todos ficaram aliviados
quando a mancha humana começou a confluir para a estação. Uma buzina rasgou o
ar, o trânsito lento e rezingão desaguou nos diversos destinos e todos voltaram
a andar rapidamente. O som de cada voz foi enrolado naquele novelo de sons.
Comecei a correr, também. Fugi
daquele espaço, daquele olhar que parecia saber mais de mim do que eu próprio.
Não olhei mais para trás. «Se o corpo pára», pensei, «o pensamento emerge».
As autoridades explicaram
que tinha sido uma quebra de energia. Algo em rede que tinha afectado todo o
mundo. Talvez uma sabotagem que queria parar a movimentação social, os
transportes, os serviços…. As imagens foram escassas. Ninguém protestou. Por um
instante, cada pessoa viu-se por inteiro e jamais alguém quis falar sobre isso.
Só agora me atrevo a
imaginar o que aconteceu.
O homem ficou entregue à sua
alienação lúcida.
Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
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